Presentes recíprocos - Artigo para O Globo, 6 de outubro de 2012.
- 06 Outubro 2012
*Cristovam Buarque
Os historiadores terão dificuldades para explicar como foi possível a sociedade brasileira desprezar tanto suas crianças.
Como
foi possível a sexta economia do mundo não ser capaz de cuidar decente e
competentemente de suas crianças, deixando milhões delas fora da
pré-escola, sabendo que centenas de milhares de mães são obrigadas a
deixar seus filhos na primeira infância sob os cuidados de outros
filhos, às vezes com 10 anos de idade, retirados da escola para este
trabalho.
Por
que esta rica sociedade ainda tem fora da escola 3,5 milhões dos seus
50 milhões em idade escolar? E aqueles matriculados que, em sua grande
maioria não frequentam, não assistem, não permanecem na escola e não
aprendem? Por que apenas 40% terminam o ensino médio, e em cursos sem
qualificação? Como foi possível tratar tão desigual a infância conforme a
renda dos pais? E como explicar, que em pleno século XXI, centenas de
milhares de meninos e meninas fiquem nas ruas do Brasil e cerca de 100
mil submetidos à exploração sexual? E como será possível explicar daqui a
20 anos, que nos últimos 20, pelo menos 10 mil crianças tenham sido
assassinadas, uma média de 14 por dia?
Os
historiadores ficarão perplexos quando descobrirem que esse quadro
persiste, apesar de o Brasil comemorar o Dia da Criança, em 12 de
outubro, desde 1924.
Alguns
historiadores dirão que o maltrato e o abandono são lendas criadas
sobre o passado. Outros darão explicações culturais: o imaginário
egoísta e imprevidente da população brasileira, com alta preferência
sobre o consumo material no presente, um povo que não respeita a
atividade intelectual nem considera riqueza o acúmulo de conhecimento.
Outros se limitarão a dizer que a sociedade dividida por uma histórica
apartação social cuidava dos poucos filhos da minoria rica, deixando de
lado as massas de crianças, filhas de pobres.
Os
historiadores terão dificuldades em explicar a indecência do abandono e
estupidez, o sacrifício do maior potencial que uma sociedade dispõe:
seu futuro, sob a forma de sua infância.
Mas
uma coisa os historiadores terão de reconhecer: o quadro de violência,
ineficiência, corrupção, desigualdade e atraso civilizatório em 2012
decorrem da forma como foram tratadas as crianças de antes.
O
Brasil de hoje é o país construído pelas crianças de ontem; e o Brasil
de amanhã tem a cara da maneira como tratamos nossas crianças de hoje.
Se
quisermos um bom futuro para o Brasil, é preciso cuidar das crianças do
presente, de uma maneira diferente daquela do passado. Como diz a
ex-senadora Heloisa Helena: “O Brasil precisa adotar uma geração de suas
crianças, do pré-natal ao final do ensino médio de qualidade para
todos”. Essas crianças adotadas hoje adotarão o Brasil amanhã. O futuro
do Brasil seria os cuidados delas para com o país, uma retribuição
espontânea do que receberam no passado.
*Cristovam Buarque é professor na UnB e senador pelo PDT-DF.
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