Num
país como o Brasil, em que 92% dos brasileiros se declaram religiosos, é
difícil desvincular a religião do debate político. Essa relação de
proximidade pode ser explicada, em parte, pela religiosidade popular e
pela influência que o catolicismo e as religiões protestantes
tradicionais exerceram na constituição dos movimentos sociais
brasileiros a partir da década de 1980, sob influência do marxismo e da
Teologia da Libertação.
Apesar da influência religiosa, na última década os movimentos
sociais “estão abandonando o discurso religioso, utópico,
marxista-cristão e assumiram o discurso pragmático-capitalista
neoliberal”, assinala o psicólogo e pesquisador do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos – Unisinos, Nadir Lara Junior.
Na entrevista a seguir, concedida ao portal IHU On-Line, o
pesquisador também comenta a ascensão da bancada evangélica no Congresso
e a influência da religião nas eleições municipais deste ano. “Não
adianta os candidatos laicos criticarem os candidatos religiosos, ainda
mais num momento em que o Estado laico está mostrando uma dimensão de
desonestidade política muito assustadora. Quando você debate com um
candidato assim, não sabe se ele é de esquerda, de direita, de centro,
se ele está agradando você porque ele quer seu voto ou porque quer lhe
ludibriar. Então, essa diluição da fronteira política no Estado laico
faz com que os candidatos religiosos cresçam, porque eles não omitem a
sua ideologia”, aponta.
Confira a entrevista.
Historicamente, como as religiões e a religiosidade
influenciaram a formação política e constituíram o núcleo ideológico dos
brasileiros?
Nadir Lara Junior – Várias pesquisas demonstram como a questão
da religiosidade marcou a formação do povo brasileiro. A professora
Maria Isaura Pereira de Queiroz apontou as experiências messiânicas
existentes no Brasil desde os indígenas e como eles traziam esses
elementos religiosos, os quais serviram de referência para criar um
sentimento de revolta e indignação contra a opressão portuguesa.
Depois de 1950, quando o cristianismo já tinha se alastrado e criado
um tipo de religiosidade mais sincrética, misturando elementos das
religiões afro e indígenas, que denominamos de religiosidade popular,
que constitui o universo simbólico do povo brasileiro. Posteriormente, a
partir de 1960, a Igreja Católica introduz a Teologia da Libertação,
quando passa a observar a experiência das comunidades mais pobres do
Brasil e a fundamentar isso teoricamente, numa experiência cristã mais
aprofundada. A Igreja assume essa realidade não como um elemento
negativo, pejorativo da cultura, mas como um elemento religioso e
político, porque a Teologia da Libertação sofre uma influência do
cristianismo e do marxismo. Então, aqueles aspectos que já faziam parte
da cultura brasileira são sistematizados pela Teologia da Libertação,
que começa a organizar o povo a partir desta experiência de
religiosidade popular, que já estava presente na cultura. Tanto que os
métodos usados por essa teologia são ler a Bíblia a partir da realidade,
ensinar as pessoas a ler e escrever, alfabetizar, capacitá-las a
compreender seus direitos a partir da experiência de Jesus Cristo, que é
visto como o libertador da opressão que está instalada historicamente.
Particularmente falando, eu estudo política, não religião. Porém,
para falar de política no Brasil, não posso ignorar a influência
religiosa que sempre esteve presente. De acordo com o último censo, 92%
das pessoas se declaram religiosas no país. E o próprio conceito de não
declarar-se religioso no sentido de não estar vinculado a uma religião
não significa que a pessoa não seja religiosa. Estamos em um país que é
religioso; então, como falar de política cerceando a religião?
Qual foi a influência das religiões no processo de
constituição da identidade e do discurso político dos movimentos sociais
brasileiros? O senhor menciona que há uma crescente apropriação de
elementos religiosos por parte dos movimentos sociais. Do que se trata
especificamente?
Nadir Lara Junior – Boa parte dos movimentos sociais
brasileiros nasce de uma influência cristã e da religiosidade popular,
assim como de uma influência marxista. Esses são elementos fortes que
marcam os movimentos sociais das décadas de 1980 e 1990. Entre os
fenômenos político-religiosos, destaca-se a mística, que está presente
no MST e que articula, dentro desse fenômeno, elementos religiosos,
políticos e culturais. A mística é uma encenação, um ritual coletivo em
que as pessoas cantam, celebram, elaboram hinos do próprio movimento
para se prepararem e conseguirem alcançar seu próprio objetivo dentro do
movimento e fora dele. Portanto, a mística é um elemento de
constituição da identidade coletiva do MST e de outros movimentos que a
assumem como elemento fundamental e estruturante. Trata-se de um
elemento próprio do movimento que, assumidamente, faz política
costurando esses elementos cristãos e marxistas.
Qual a raiz desta relação do catolicismo brasileiro com o
marxismo? Por que parte da Igreja brasileira buscou elementos teóricos
em Marx?
Nadir Lara Junior – Essa situação é complexa e central para
compreender a trajetória da Igreja no Brasil. Na década de 1960,
vivia-se a chamada guerra fria e o mundo estava dividido entre
socialistas e capitalistas. Nesse período, a América Latina começa a ser
influenciada por pensadores marxistas nas correntes intelectuais
existentes. Essa influência se deu tanto pela vinda de operários
europeus para as grandes cidades brasileiras – que trouxeram o marxismo e
o anarquismo – como pelos intelectuais latino-americanos, que haviam
estudado na Europa. Nessa época, o marxismo era um movimento intelectual
que estava pairando pelas universidades europeias, onde os intelectuais
brasileiros e latino-americanos estudavam e, portanto, ele exerceu
muita influência aqui, especialmente porque havia uma tentativa de
pensar uma ciência para a América Latina. É com esse objetivo que
diversos intelectuais formularam teorias para tentar compreender a
realidade latino-americana.
Paulo Freire, com sua pedagogia do oprimido, deu o grande “pontapé”
no movimento intelectual da Libertação através da educação; Gustavo
Gutierrez deu início à Teologia da Libertação; Enrique Dussel, na
Argentina, iniciou os estudos da Filosofia da Libertação; e Ignacio
Martín-Baró, que morreu junto com Ignacio Ellacuría, fundamentou a
Psicologia da Libertação. Então, iniciou-se um movimento para pensar a
ciência a partir de um jeito de ser latino-americano, o qual foi
fortemente influenciado pelo marxismo.
Os teólogos latino-americanos, quando chegaram à Europa e estudaram
marxismo, compreenderam que a visão de comunidade, de viver sem opressão
– o que o marxismo propõe –, estava próximo das propostas do
cristianismo. A partir daí começaram a ver uma grande semelhança entre o
comunismo e o comunitarismo cristão. A própria ideia de Jesus
libertador é a do materialismo histórico, ou seja, a de trabalhar com
questões da realidade. Em outras palavras, a Teologia da Libertação
torna o Jesus metafísico em um Jesus material, sem perder a dimensão
mística. Eles conseguem trazer Jesus para a materialidade e passam a
atuar com uma força muito grande, especialmente nas periferias.
Quais foram as principais transformações no campo religioso e
político da última década, e como elas influenciaram a prática e o
discurso político dos movimentos sociais?
Nadir Lara Junior – Na última década ocorreram três mudanças muito
significativas: o número de evangélicos saltou de15% para 22%, gerando
um boom demográfico; um ex-sindicalista (Lula), que atuava junto às
Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, à Central Única dos Trabalhadores –
CUT e ao sindicato, chegou ao poder; e houve um recuo da Igreja
Católica em função de uma ação política administrativa do Papa João
Paulo II, que determinou o recuo de incentivo às CEBs, deixando também
de nomear bispos ligados à Teologia da Libertação – assim, os seminários
saíram das mãos de padres da Teologia da Libertação –, e incentivando o
movimento pentecostal dentro da Igreja Católica.
Esses três elementos começam a circular na sociedade brasileira e
afetam principalmente os movimentos sociais porque, antes de Lula
assumir a presidência, eram justamente os membros da Igreja Católica,
das igrejas protestantes históricas, partidos políticos e dos sindicatos
que ofereciam formação política para os integrantes dos movimentos
sociais. Com a chegada de Lula ao poder, há uma mudança radical: um
recuo dos sindicatos, partidos e dos movimentos sociais e uma associação
deles com o governo. Diante dessa nova conjuntura, um ex-líder sindical
vira ministro e passa a negociar a greve com o amigo que deixou no
sindicato. Criou-se um problema, porque as principais lideranças dos
movimentos sociais começaram a ser chamadas para participar do governo e
a representar os movimentos sociais que, até o dia anterior às
eleições, eram contra o Estado e, dias após as eleições, se tornaram o
próprio Estado. A partir desse momento, surge um problema de
identificação, de quem são os movimentos sociais e de quem é o Estado. O
Estado, que foi sempre o inimigo (“fora FHC, fora FMI, fora
neoliberalismo”), de repente começa a chamar membros dos movimentos para
compor secretarias, cargos de confiança etc.
Formação instrumental
Diante da nova configuração, há um recuo na formação política, e o
movimento social passa a ter de prover a formação política para seus
membros. Este é o tema da minha atual pesquisa, e já pude constatar que a
formação dos movimentos sociais da última década estão se tornando
instrumental, ou seja, uma formação para ensinar o militante a se
movimentar dentro das burocracias das políticas públicas. Não nego a
importância das políticas públicas. O que afirmo é que os movimentos
sociais, de certa forma, se reduzem a formar seus quadros não na
oposição, na crítica, na política, mas sim numa certa subserviência
travestida de participação política. A política pública virou a
participação política. Com isso acaba-se com toda a história de
contestação dos movimentos sociais, reduzindo-os a um quadro técnico. O
próprio movimento acaba profissionalizando uma pessoa na política
pública, e o Estado contrata a mão de obra qualificada pelo movimento, e
assim ele fica fragmentado. Isso gera um problema porque os movimentos
vão perdendo a dimensão da crítica.
Essa mudança diz respeito aos movimentos sociais e sindicatos do mundo todo ou está restrita ao Brasil?
Nadir Lara Junior – Essa é uma característica brasileira.
Inclusive a atuação dos movimentos sociais no país é bem característica,
e bastante diferente do que existe no exterior. Diante da crise
econômica surgem outras formas de manifestações, como o Movimento dos
Indignados, da Espanha, ou Occupy Wall Street, dos EUA. Os movimentos de
ocupação são uma tentativa de organização popular longe do Estado e dos
partidos para demarcar uma fronteira.
Esses novos movimentos sociais não têm representatividade política. Como poderão fazer a diferença?
Nadir Lara Junior – A atuação dos antigos movimentos deixou de
herança uma concepção para os novos movimentos: é preciso mexer na
estrutura do Estado. Por isso a ideia de revolução novamente volta à
pauta. Fazer revolução ou falar de mudança social hoje em dia é um
escárnio. Parece uma ideia de pessoas ultrapassadas, mas nunca se teve
tão em voga como hoje a necessidade de se discutir dois elementos:
ideologia política, porque ela foi sepultada junto com a aproximação dos
movimentos sociais com o Estado; e o que é revolução hoje, ou seja, que
tipo de mudança social queremos.
Esses aspectos são importantes porque o Estado brasileiro, desde seu
surgimento, nunca foi reconstruído; ele vive de reformas e está sempre
reformando a educação, a saúde. Basta ver que até hoje o país está
reformando o Estado da ditadura militar. E nós, intelectuais, não
paramos para provocar, no cenário político, uma discussão. Já vimos que
não há como fazer alianças com este Estado, mesmo estando no poder um
ex-sindicalista, porque seremos sempre engolidos.
Mas como fugir dessa negociação, se o Estado é constituído pelas oligarquias?
Nadir Lara Junior – Saber disso já é alguma coisa. Foucault
fala do saber e do poder. Saber que precisamos colocar na pauta a
mudança do Estado já é uma transformação imensa. Mas hoje ninguém quer
saber disso. Está todo mundo fascinado com o Estado, porque a economia
brasileira está estável, todos querem aumento salarial, e todo mundo
está satisfeito com essa “coisa” que o Brasil vive – e eu digo “coisa”,
porque não sabemos descrever isso. Estamos fascinados e não paramos para
avaliar o Estado.
Entra campanha, sai campanha, todos os políticos falam de reformar a
saúde, a educação, a moradia e a segurança. Se os políticos resolvessem
esses quatro problemas, não teriam o que dizer nas campanhas políticas,
porque só falam disso. Não se fala em aperfeiçoamento de saúde,
educação, mas do primário. Quer dizer, fala-se de as pessoas terem um
teto para morar, de as crianças terem banheiros nas escolas, e do mais
elementar: do fato de que essas oligarquias continuam com as mesmas
políticas há séculos. O nosso grande desafio é saber disso, diante de
uma sociedade que insiste em não querer saber.
O que distingue o discurso dos movimentos sociais brasileiros hoje de uma década atrás?
Nadir Lara Junior – A partir da minha pesquisa, posso dizer que
diante da interpelação do Estado, os movimentos sociais estão
abandonando o discurso religioso, utópico, marxista-cristão e assumindo o
discurso pragmático-capitalista neoliberal. Então, o discurso da
maioria dos militantes é praticar uma política pragmática, embora muitas
vezes eles nem se deem conta disso. Alguns intelectuais dizem que o
pragmatismo é necessário. Concordo, desde que se saiba o que se está
reproduzindo com ele. Quando se assume, nesse contexto específico, um
discurso neoliberal, está-se depondo contra esse processo histórico de
formação dos movimentos e favorecendo as oligarquias, o Estado
capitalista e o mundo desigual.
Essa é uma tendência crescente no mundo do trabalho.
Nadir Lara Junior – Sim, porque retiramos do mundo do trabalho
as discussões ideológicas que nos unem e nos afastam: quem é esse
Estado? Quem é nosso patrão? Quem é esse governo? A geração atual está
pegando o mundo que a geração anterior deixou: muitos que eram de
esquerda hoje estão abraçados com os de direita. Como os jovens irão
acreditar nesse modelo? Diante de tal conjuntura novas manifestações
estão surgindo. As pessoas estão falando e criticando o sistema de outro
jeito, usando as redes sociais, por exemplo. Existem novas formas de
pensar e que ainda são embrionárias.
Como ocorre a relação entre política e religião no cenário
político atual? Nesse sentido, como vê a atuação da bancada “religiosa”
no cenário político brasileiro?
Nadir Lara Junior – O boom do movimento neopentecostal chegou
aos movimentos sociais e nas políticas públicas. Como eles chegam a
estes lugares? Com um arcabouço político, ideológico, religioso de sua
matriz neopentecostal, que é extremamente pragmática. O
neopentecostalismo nasce com uma experiência da periferia dos EUA, e o
governo estadunidense se apropria disso, fazendo um canal para divulgar
as ideologias neoliberais com seus elementos: individualismo e
pragmatismo. Essa combinação ideológica de neoliberalismo e
neopentecostalismo entra no movimento social e torna tudo muito
pragmático. Em geral, o evangélico participa do movimento social, porém
não quer discutir questões mais amplas relacionadas à política, mas sim o
acesso a casa, a universidade etc.
Há poucos dias li a tese de doutorado de Bruna Dantas sobre a bancada
evangélica no Congresso. Ela analisa a ideologia da bancada evangélica,
hoje, e mostra como os evangélicos se estruturam para pautar algumas
políticas dentro do cenário nacional baseados em ideias religiosas. Por
isso que uma série de temas com implicações morais não são aprovadas,
como a questão do aborto e a da homossexualidade.
Muitos votos começam a ser direcionados aos pastores das igrejas.
Começamos a remontar um novo tipo de voto de cabresto, como tinha
antigamente no interior do Brasil. Mas como disse, não podemos culpá-los
nem praguejá-los, porque estão exercendo tudo aquilo que o Estado lhes
permite fazer. Da mesma forma que os evangélicos defendem questões
morais, os ruralistas defendem pautas de seus interesses. Só os
trabalhadores não se organizam para se fazer representar.
São os membros evangélicos, e não as igrejas, que se
relacionam com os movimentos sociais? A atuação é diferente daquela do
catolicismo?
Nadir Lara Junior – É diferente. O pastor vai aos encontros do
movimento para rezar, dar um apoio, mas ele não representa o apoio da
igreja ao movimento. A igreja apoia o seu fiel para que ele consiga algo
pontualmente.
Como vê a representatividade das igrejas tradicionais junto dos movimentos sociais?
Nadir Lara Junior – A Igreja enquanto instituição se retira
dessa discussão, mas isso não quer dizer que padres, freiras e
religiosos façam o mesmo. Ainda há um grupo importante de padres e
religiosos que dão suporte a esses movimentos. Tenho um colega
antropólogo que estuda a relação das freiras nas favelas do Rio de
Janeiro e a liderança que elas ainda exercem nesses locais. Isso
demonstra que têm muitos religiosos resistindo, especialmente no
interior e nas áreas de fronteiras. A Igreja Católica e as protestantes
históricas ainda são referência nessas questões enquanto congregações.
Quais os limites da interferência religiosa no cenário político? Como fica a discussão acerca do Estado laico no Brasil?
Nadir Lara Junior – Nós temos de entender o Brasil. Somos um
Estado laico com 92% de pessoas que se declaram religiosas, cujo lema
nas cédulas de dinheiro é “Deus seja louvado”. Então, temos uma
realidade própria e só sabemos fazer política se tivermos os
atravessamentos religiosos. Não quero ser reducionista e dizer que a
política é de um jeito ou de outro, mas temos de considerar as questões
que estão postas. O Brasil é um país complexo, porque na Europa, se
observarmos os teóricos políticos, há uma ideia de que as coisas são
mais divididas, disciplinadas, organizadas. Foucault mostra como o
disciplinamento na Europa aconteceu muito cedo, só que nós vivemos em um
país em que o ordenamento social é outro: as pessoas pensam e se
relacionam de outro jeito, e a política ainda é muito embrionária,
porque o país saiu de uma ditadura há pouco tempo. Tudo no Brasil é
muito próprio e característico. Não sou um defensor da religião, mas
temos de olhar para ela, porque exerce influência.
Como o senhor vê o uso do espaço público, como a televisão, pelas religiões?
Nadir Lara Junior – Vivemos num Estado democrático capitalista.
O que isso significa? Significa que quem paga tem, e quem não paga não
tem; quem tem dinheiro faz o que quer, e quem não tem dinheiro não faz
nada. Os evangélicos neopentecostais entenderam muito bem essa
linguagem. Eles pagam para ter acesso a determinados horários na
televisão, no rádio. E dentro de uma sociedade capitalista, quem vai
regular isso?
Em um país em que há liberdade religiosa, como dizer que eles estão
errados e que não podem utilizar esse espaço? Tem de cuidar para que não
se crie uma guerra religiosa. Por isso não podemos ficar restritos a
essa questão, temos de ampliar o debate, discutir se esse Estado está
funcionando para todos. O capitalismo e o neoliberalismo que estamos
implantando a cada dia na universidade, na escola, estão formando que
tipo de sujeito?
De acordo com a Organização Mundial da Saúde – OMS, a doença do
século XXI são as doenças mentais. Temos visto pelas notícias da
imprensa que quanto mais capitalistas são os Estados, mais psicopatas
eles formam. E aí eu pergunto: Como vamos formar uma geração sem
valores, sem escrúpulo? Nesse sentido, Marx ajuda a compreender algumas
coisas a partir da realidade histórica, material. O capitalismo cria
ideologias para que se considere um psicopata como algo normal, natural,
parte do cenário, um fraco e único culpado parte da história, da mesma
forma que ser oprimido pelo patrão é natural, e o importante é consumir.
Vivemos a base de ideologias desse tipo, que nos fazem viver num engodo
praticamente irreversível.
A religião determina o voto? Como explicar ascensão de candidatos evangélicos, como Celso Russomanno em São Paulo?
Nadir Lara Junior – O ministro José Eduardo Cardozo já disse
que é preciso fazer uma reforma política, mas não se pode tocar em
questões religiosas. Isso diz alguma coisa. Como pode um ministro de um
Estado laico fazer esse tipo de afirmação? O candidato à prefeitura de
São Paulo, Celso Russomanno, é abertamente um candidato da Igreja
Universal do Reino de Deus. Uma igreja que está fazendo aquilo que
sempre quis fazer e se propôs a fazer: formar lideranças políticas e
chegar ao mais alto dos cargos possíveis. Eles estão fazendo isso com
muita competência, com muito dinheiro, e estão chegando lá.
Gostaria de destacar que não sou contra ou a favor dos evangélicos;
apenas estudo o fenômeno político. A sociedade democrática é feita por
disputas, e elas são vencidas por quem está melhor organizado. Por que
os movimentos sociais estão pagando seu preço? Porque eles se retiraram
das periferias mais pobres, se retiraram dos debates mais prementes, e
assim acabam negando as origens políticas que os colocaram no poder.
Os que se opõem aos evangélicos não devem percebê-los como um inimigo
a ser destruído, mas como um adversário. É legítimo se opor a eles no
cenário político, debater, porque eles sempre disseram de onde vêm, o
que fazem e o que vão fazer. O Edir Macedo nunca negou que queria chegar
à presidência da República. Eles nunca deixaram de cobrar dízimo; foram
sempre explícitos. O que quero relativizar nesse sentido é que esses
fatos são públicos, e todo mundo sabe. O que não é público é o nome do
político que rouba a merenda escolar. Quero colocar o debate na
instância política. Então, não adianta os candidatos laicos criticarem
os candidatos religiosos, ainda mais num momento em que o Estado laico
está mostrando uma dimensão de desonestidade política muito assustadora.
Quando você debate com um candidato assim, não sabe se ele é de
esquerda, de direita, de centro, se ele está agradando você porque ele
quer seu voto ou porque quer lhe ludibriar. Então, essa diluição da
fronteira política no Estado laico faz com que os candidatos religiosos
cresçam, porque eles não omitem a sua ideologia – isso não quer dizer
que eu concorde com ela.
Diante da atuação política dos evangélicos, o que podemos
esperar para as próximas eleições municipais? Uma ascensão de políticos
religiosos?
Nadir Lara Junior – Sim, e o Russomanno, em São Paulo, é a
prova cabal disso. Este candidato está derrotando – a princípio, as
pesquisas mostram isso – candidatos tradicionalíssimos, como José Serra,
e está desbancando inclusive o candidato do PT, mesmo com o apoio de
Lula e de toda a máquina governamental. Isso quer dizer alguma coisa. O
que isso quer dizer? Que o Russomanno, em nenhum momento, nega sua
filiação à Igreja Universal, e isso mostra uma honestidade política –
não quer dizer que eu concorde com isso. Ele nunca disse que deixará de
defender os valores da bancada evangélica. Então o povo começa a
perceber que entre ele e os outros, há ainda um princípio de honestidade
que falta nos demais políticos.
Quais as relações entre religião e política no cotidiano?
Como essa relação, de um lado, emancipa os cidadãos e, de outro, aliena?
Nadir Lara Junior – O nosso cotidiano está recheado de questões
religiosas. Há algum problema nisso? Não, depende do uso que se faz
disso. A nossa religiosidade está sendo leiloada pelo marketing, pelo
governo, ou por pessoas que já entenderam que essa pré-disposição
religiosa rende lucro ou voto. Esse é o grande problema. Com esse recuo
da formação política nas bases, a propensão da religião alienar aumenta
muito, e há um cenário muito fértil para que religião seja tomada como
ópio do povo. Estamos diante de um problema gravíssimo que precisa ser
pensado.
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