Constituições e incoerências |
25/02/2011 |
Cardeal Dom Eugenio de Araújo Salles - Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro |
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A coerência entre a Fé cristã e a vida privada e pública dos que a professam é fundamental para o indivíduo e a sociedade.
Entre os fatores que enfraquecem a credibilidade nos ensinamentos da
Igreja se enfileira, em primeira linha, o exemplo do católico que
pratica atos em desacordo com as normas emanadas pelo Salvador e
transmitidas pelo Magistério eclesiástico.
Quando, através do jornal, do rádio e televisão, se toma conhecimento de
episódios escabrosos de toda espécie, vem à memória a discrepância
dessas ocorrências com a moral cristã. A quase totalidade dos que
cometem esses desvios receberam o batismo. São pessoas incorporadas ao
rebanho de Cristo que assim agem contra as lições do Mestre. Ao
contrário, a coerência entre a atuação de um membro da comunidade
eclesial e a doutrina de Jesus constitui a melhor e mais eficaz pregação
do Evangelho.
Desejo, aqui, ao fazer essas considerações, divulgar um trecho de um
escrito que se intitula “Carta a Diogneto”. Descreve o modo de agir dos
seguidores de Jesus, na sociedade e no lar. O autor é desconhecido.
Alguns historiadores querem identificar o ilustre apolologeta com
Kodratos que, pelo ano 125 de nossa era, dirigiu uma apologia ao
Imperador romano Adriano, cujo texto está desaparecido. Kodratos era de
Atenas, discípulo dos Apóstolos, como Inácio de Antioquia e Policarpo.
Não se sabe que tenha tido uma sede episcopal como estes outros.
Contudo, ele reúne os cristãos em Atenas, após uma perseguição. Essa
epístola surgiu, o mais tardar, antes do fim do século III.
A Igreja não só transmite a doutrina dos Apóstolos, mas confronta-a com
um ambiente adverso, como o mundo de então. Essa ingente aventura
evangelizadora perdura até nossos dias e só terminará no final dos
tempos.
A “Carta a Diogneto” é um testemunho singular de uma Fé profunda, clima
espiritual e admirável autoconsciência cristã. A influência de São João e
de São Paulo é evidente. O escritor é dotado de notável erudição,
possui apurado estilo literário, a elegância e a arte retórica dos
gregos.
O ilustre destinatário a que se dirige procura saber quem é o Deus dos
cristãos, o que é o amor ao próximo e o porquê do surgimento tão tardio
do Cristianismo na História no mundo (cap. I). E o autor responde (cap.
II a IV), demonstrando como o culto pagão e o do Antigo Testamento são
inadequados e incomparavelmente inferiores ao do Novo Testamento. Nos
capítulos V e VI, segue-se a descrição da vida sobrenatural dos
cristãos, que são “a alma do mundo”. Os capítulos VII e VIII oferecem
profundas reflexões sobre o “Logos” como revelação da essência divina. O
fato de ter vindo somente agora o Redentor insere-se dentro da
pedagogia do Senhor, segundo a qual o homem deve tomar consciência de
sua incapacidade de se salvar sozinho. Os capítulos XI e XII são
provavelmente posteriores e de outro autor.
O que nos interessa hoje é o comportamento das pessoas que seguem os
ensinamentos do Mestre, como viviam os primeiros cristãos, a nítida
coerência entre a Fé e os atos praticados pelos fiéis. A liturgia das
Horas (Breviário), na quarta-feira da quinta semana pascal, inclui um
trecho dessa obra e aqui transcrevo alguns períodos elucidativos do
assunto que me proponho a abordar hoje. Ei-los, extraídos do capítulo V e
VI: “Vivem em cidades gregas ou bárbaras (...) e seguem os costumes da
terra, (...) mas a sua maneira de viver é sempre admirável (...).
Casam-se como toda gente e criam seus filhos, mas não se desfazem dos
recém-gerados. Participam da mesma mesa, mas não do mesmo leito. São de
carne, mas não vivem segundo a carne (...). Obedecem as leis
estabelecidas mas, pelo seu modo de vida, superam as leis. Amam toda
gente e toda gente os persegue (...). Conduzem-nos à morte, mas o número
dos cristãos cresce continuamente. São pobres e enriquecem os outros;
tudo lhes falta e tudo lhes sobra. São desprezados mas no desprezo
encontram sua glória (...). Numa palavra: os cristãos são, no mundo, o
que a alma é no corpo (...)”.
Essa amostra da descrição, pela profundidade de conceitos e beleza de
estilo, revela a existência, em meio ao Império Romano, de uma força
espiritual extraordinária. Ainda vivos, os Apóstolos já haviam penetrado
no coração do Império: “Todos os santos vos saúdam, especialmente os da
casa do imperador” (Fl 4,22).
Fiéis cidadãos sobreviveram à derrocada do paganismo. Ainda hoje, entre
luzes e sombras, a luta pela coerência continua. E o Concílio Ecumênico
Vaticano II exatamente ensina o retorno a estas fontes como um meio de
revigorar a difusão do Cristianismo no mundo contemporâneo.
Tendo diante de nós esse trecho da epístola a Diogneto, que mostra, com
fidelidade, a vida dos cristãos, consideremos o que presenciamos em
nosso meio.
No Brasil, hoje, existe uma chaga que nos envergonha como, há mais de um
século, a escravidão. Refiro-me ao abismo entre alguns que recebem
ricos salários e a grande maioria, que sofre na pobreza ou na miséria.
E que dizer da violência, dos crimes, da corrupção na vida pública? Das drogas, do jogo, da luta entre facções de marginais?
Cada um continue esse triste elenco de males que nos afligem. Ele é
excessivamente longo. São batizados que negam, por atos, seu batismo.
A “Carta a Diognetto” nos aponta algo que está verdadeiramente na raiz
das nossas enfermidades morais, espirituais e sociais: a contradição da
vida privada e social com a Doutrina de Cristo. E nos incita a superar a
ambiguidade. No momento em que houver coerência de nossa atitude com a
Fé que professamos, teremos uma Pátria próspera e tranquila. |
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