Como nasce a ética?
A base de toda construção ética, cujo campo é
a prática, se baseia nesta pressuposição: a ética
surge quando o outro emerge diante de nós.
O outro pode ser a pessoa mesma que se volta sobre si mesma, analisa
a consciência, capta os apelos que nela se manifestam (ódio,
compaixão, solidariedade, vontade de dominação ou
de cooperação, sentido de responsabilidade), se dá
conta de seus atos e das consequências que deles se derivam. O outro
pode ser aquele que está à sua frente, homem ou mulher,
criança, trabalhador, empresário, portador de HIV, negro
etc. O outro podem ser os outros como uma comunidade, uma classe social,
a sociedade como um todo, ou, numa perspectiva mais glabal, a natureza,
o planeta Terra como Gaia e, em último termo, Deus.
Diante do outro ninguém pode ficar indiferente. Tem que tomar
posição. Mesmo não tomando posição,
silenciando e mostrando-se indiferente, já é uma posição.
A ética surge a partir do modo como se estabelece a relação
com estes diferentes tipos de outro. Pode fechar-se ou abrir-se ao outro,
pode querer dominar o outro, pode entrar numa aliança com ele,
pode negar o outro como alteridade, não respeitando-o mas incorporando-o,
submetendo-o ou simplesmente destruindo-o.
De todas as formas, o outro representa uma pro-posta que reclama uma
res-posta. Deste confronto entre pro-posta e res-posta surge a re-sponsa-bilidade.
Ao assumir minha responsabilidade ou demitir-me dela, me faço um
ser ético. Dou-me conta da consequência de meus atos. Eles
podem ser bons ou ruins para o outro e para mim.
O outro é determinante. Sem passar pelo outro (que posso ser
eu mesmo), toda ética é anti-etica.
Não sem razão todas as religiões e tradições
éticas, do Ocidente e do Oriente, estabelecem como máxima
fundadora do discurso ético: “não faça ao outro
o que não queres que te façam a ti”. Ou positivamente:
“faça ao outro o que que gostarias que te fizessem a ti”.
É a regra áurea.
E como o outro mais outro é o pobre e o excluido, o imperativo
ético mínimo e urgente, prévio a qualquer outro,
é esse, bem formulado por Enrique Dussel, argentino e filósofo
da libertação:
“Liberta o pobre e inclua o excluido”.
Apliquemos isso à nossa sociedade. Ela não é uma
sociedade qualquer. Precisa ser qualificada: é uma sociedade, predominantemente,
estruturada no modo de produção capitalista, quer dizer,
privilegia o capital sobre o trabalho, privatiza os meios de produção
e define de forma desigual o acesso aos bens necessários à
vida: primeiro quem detém os meios de produção, depois
os demais, deixando até de fora quem não tem força
social de pressão. São os excluidos, hoje perfazendo, as
grandes maiorias da humanidade, cujas vidas não têm sustentabilidade,
vivem abaixo do nivel de pobreza e, em consequência, morrem antes
do tempo.
Esse tipo de sociedade valoriza mais a competição que
a cooperação e magnifica o indivíduo que constrói
sozinho sua vida, seu benestar e seu destino e não a sociedade
e a comunidade dentro das quais, concretamente, o indivíduo sempre
se encontra.
A sociedade neo-liberal levou até as ultimas consequências
esta visão. Por isso, os governos administram desigualmente os
bens públicos, privatizam, planejam políticas públicas
e sociais pobres para os pobres e ricas para os ricos e poderosos seja
indivíduos, empresas ou classes; atendem primeiramente a seus interesses,
garantem seu tipo de consumo e são atentos às suas expectativas.
Não as incentivam a olhar para os lados onde estão os outros
e assim fazer e refazer continuamente a solidariedade social.
Tais governos não realizam a definição mínima
de política que é a busca comum do bem comum e o cuidado
das coisas do povo. Por isso são anti-éticos e fautores
de atitudes coletivas em contradição com os apelos éticos.
Porque não se orientam pelo outro que é o princípio
fundador da ética básica.
A sociedade mundial hoje globalizada nesse modelo anti-etico promove
a globalização como homogeneização: um só
pensamento, um só modo de produção (o capitalista),
um só tipo de mercado, uma só tipo de religião, o
cristianismo, um só tipo de música (rock), um só
tipo de comida (fast food), um só tipo de excutivo, uma só
tipo de educação, um só tipo de lingua, o inglês
etc.
Com a negação da alteridade ou o seu submetimento ou a
sua destruição, a sociedade-mundo atual se coloca em contradição
com ética. Essa atitude perversa tem como consequência a
má qualidade de vida atual em todos os âmbitos sociais, culturais
e ambientais.
Essa atitude é tanto mais grave pelo fato de atingir o substrato
fisico-quimico que possibilita a biosfera e o projeto planetário
humano. Não se respeita a Terra como o grande outro e como subjetividade,
chamada Gaia. Reduz esse super-organismo vivo, a um baú inerte
de recursos naturais, entregues ao bel prazer humano. Violenta a alteridade
dos eco-sistemas, depredando seus recursos, ameaçando as espécies,
envenenando os ares, poluindo os solos, contaminando as águas,
como se esses representantes da comunidade terrenal não tivessem
uma história mais ancestral que a nossa e nós não
dependessemos deles para a nossa propria vida.
O preceito etico-ecológico urgente hoje é este:
“Aja de tal maneira que tuas ações não sejam
destrutivas da Casa Comum, a Terra, e de tudo no que nela vive e co-existe
conosco”.
Ou: “Aja de tal maneira que tua ação seja benfazeja
a todos os seres, especialmente aos vivos”. Ou :“Aja de tal
meneira que permitas que todas as coisas possam continuar a ser, a se
reproduzir e a continuar a evoluir conosco”.
Ou então: “Use e consuma o que precisas com responsabilidade
para que as coisas posssam continuar a existir, atendam nossas necessidades
e as das gerações futuras, de todos os demais seres vivos,
que tambem junto conosco têm direito de consumir e de viver”.
Precisamos consumir para viver. Mas devemos consumir com responsabilidade
e com solidariedade para com os outros, respeitando as coisas em sua alteridade
e entrando em comunhão com elas, pois são nossos companheiros
e companheiras na imensa aventura terrenal e cósmica.
Como se depreende, não é essa a ética que predomina.
A ética vigente é predatória, irresponsável,
individualista, perversa para com os outros, tratados com dissimetria
e injustiça nos processos produção, de distrubuição
e de compensação. Ela é cruel e sem piedade para
a grande maioria dos seres vivos humanos e não humanos. Por fim,
ela ameaça o futuro da biosfera e do projeto humano.
Para superarmos essa ética altamente destrutiva do futuro da
humanidade e do planeta Terra devemos partir de outra ótica. Só
uma nova ótica pode gerar uma nova ética.
A nova ótica que está se difundindo um pouco por todas
as partes arranca de outra compreensão da relidade, fundada no
conjunto de saberes que perfazem as ciências da Terra.
A tese de base desta ótica afirma que a lei suprema do universo
é a da inter-dependência de todos com todos. Tudo está
relacionado com tudo em todos os pontos e em todos momentos. Ninguem vive
fora da relação. Mesmo a lei de Darwin do triunfo do mais
forte se inscreve dentro dessa pan-relacionadade e solidariedade universal.
Por causa das inter-retro-relações de todos com todos é
que se garantiu a diversidade em todos os campos, particularmente, a biodiversidade
e o fatao de todos podermos chegar ao ponto que atualmente chegamos.
Sobrevivemos graças às bilhões de células
que inter-agem entre si em nosso corpo e das bilhões de bacterias,
mitocôndrias e outros corpos que vivem dentro das células,
células que fomam organismos, corpos, sistemas, interconcectados
com o meio natural e cósmico.
Essa cooperação de todos com todos funda uma nova ótica
que, por sua vez, origina uma nova ética de con-vivência,
cooperação, sinergia, solidariedade e comunhão de
todos com todos e com a Terra, com a natureza e com seus ecosistemas.
A partir desta ética nos contemos, nos submetemos a restrições
e valorizamos as renúncias em função dos outros e
do todo.
Ou assumimos tal ética e sobre ela fundamos um novo pacto socio-cósmico
ou corremos o risco de ir ao encontro do pior, ou de fazermos uma travessia
altamente destruidora da vida e da humanidade, capaz de dizimar um número
incontável de seres vivos.
A partir dos sobreviventes deste eventual colapso, aprender-se-ão
as amargas mas benfazejas lições para uma nova história.
Com os valores fundados na cooperação e na solidariedade
inaugurar-se-á um outro tipo de ser humano, com outro tipo de civilização
e com outro tipo de destino planetário da humanidade. O ser humano,
indivíduo social aprenderá a entender-se como sendo a própria
Terra que chegou ao momento de sentir, pensar, amar, venerar e se responsabilizar
pelo futuro comum dos humanos, de todos os demais seres e da própria
Terra, pátria e mátria de todos.
Uma nova história começará, seguramente mais cooperativa,
humanitária, ética e espiritual.
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