segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Educação e ensino

A seguir, uma análise da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e de como ela enxerga (por vezes, limita) o nosso desenvolvimento educacional.

1. Confusões conceituais
Na cabeça da maior parte das pessoas há certa confusão acerca da educação e do ensino. Essa confusão afeta nosso entendimento não só desses conceitos, mas também do papel da escola, da importância da educação não-formal, extraescolar, e do ofício dos professores.
A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) é vítima dessa confusão. O primeiro artigo, com seus dois parágrafos, parece, entretanto, evidenciar certa preocupação em evitar confusão. A educação, diz o caput do artigo, abrange “processos formativos” – nenhuma explicação sobre o que é um processo formativo, mas deixemos isso de lado por enquanto – que se desenvolvem:
  • na convivência humana
  • na vida familiar
  • no trabalho
  • nas organizações da sociedade civil
  • nos movimentos sociais
  • nas manifestações culturais
  • nas instituições de ensino e pesquisa
Inverti a ordem de alguns itens; coloquei “convivência humana” em primeiro lugar e “instituições de ensino” no fim, apenas para destacar o fato de que, segundo a própria lei que regulamenta a educação no país, a educação se dá nos “processos formativos” que acontecem basicamente em qualquer lugar em que as pessoas convivam umas com as outras (presencial ou virtualmente).
Os itens 2 a 4 seriam plenamente dispensáveis, porque a família, o trabalho, os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil são, sem exceção, espaços de convivência humana. (Faltou destacar, quem sabe, a igreja. Na educação, formal ou não-formal, ela tem tido um papel maior do que outras “organizações da sociedade civil”, como sindicatos e ONGs.)
O quinto item – “manifestações culturais” – parece apontar para espaços de convivência diferenciados, em grande parte virtuais: o livro, o jornal, as revistas, o rádio, o cinema, a televisão, a internet. Por vim, vem a escola e, enfim, começamos a ver que a coisa é meio complicada. E vai ficar mais ainda.
O primeiro parágrafo da LDBEN coloca: “Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.” Ou seja: no caput do primeiro artigo, a LDBEN chama a nossa atenção para a natureza ampla e rica do fenômeno educacional, para, em seguida, no parágrafo primeiro, esclarecer que restringirá o tratamento desse fenômeno, preocupando-se apenas com a educação escolar – aquela que se desenvolver em escolas (“instituições próprias”), por meio do ensino. Trocando em miúdos: com uma fração daquilo que contempla o conceito mais amplo e mais rico de Educação.

Se nos lembrarmos de que a educação escolar acontece no máximo até os 30 anos de vida das pessoas, em regra não passando dos 17 ou 18 anos (fim do Ensino Médio) para a maioria das pessoas, e que a educação não-escolar acontece ao longo da vida inteira, teremos uma importante razão para perguntar por que a LDBEN se preocupa apenas com uma pequena fração daquilo que devemos considerar como educação tout court. É uma pena. Mas, se é assim, por que a lei se designa como uma regra que fixa diretrizes e bases para a “educação nacional”? Deveria, me parece evidente, descrever-se (como diz no parágrafo primeiro) como uma lei para a “educação escolar”, ou simplesmente para o “sistema de ensino nacional”.
O parágrafo seguinte do primeiro artigo complica ainda mais as coisas ao determinar que “a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social”. Como deve a educação escolar vincular-se ao mundo do trabalho? Ela deve ser profissionalizante? Ou deve incluir apenas uma simbólica “orientação para o trabalho” (como leis anteriores sugeriam)? E o que, afinal das contas, é “prática social”? Se for algo abrangente, equivalente a “vida”, o que faz o “social” na frase, qualificando a prática?
Bom, não vou fazer uma análise da LDBEN inteira. Só vou pegar mais uma inconsistência conceitual.
Eis o que diz o Art. 21, que trata dos “níveis escolares”:
“A educação escolar compõe-se de:
I – educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio;
II – educação superior.”
Alguém sabe por que, apesar de os dois níveis em que se divide a educação escolar serem chamados de “Educação Básica” e “Educação Superior”, a primeira é formada pela Educação Infantil, pelo Ensino Fundamental e pelo Ensino Médio?
Difícil de entender, não é mesmo? Alguém pode ter uma explicação melhor do que desleixo conceitual, mas eu confesso desconhecê-la. Recebi uma sugestão de que talvez seja porque, no caso da Infantil e da Superior, trata-se de algo mais interessante, por isso considerado educação, enquanto que no caso do Fundamental e do Médio, trata-se de algo chatíssimo, por isso considerado ensino… Mas creio que os legisladores prefeririam se considerar vítimas de desleixo conceitual a admitirem que boa parte daquilo que é coberto na lei é tido como algo extremamente chato pelas “vítimas” do processo…
Mais uma observação: a lei fala em “Ensino Médio”, mas quando trata, de forma abrangente, da etapa que vem depois do Ensino Fundamental, refere-se também a “Educação Profissional Técnica de Nível Médio”. Será que aquilo que acontece na Escola de Nível Médio, quando regular, é mero “Ensino”, mas, quando técnico, se torna “Educação Profissional”?
E o que dizer da “Educação de Jovens e Adultos”, que a lei introduz mais adiante? Será que o Ensino Médio regular não é educação, mas apenas ensino, enquanto a Educação Profissional e a Educação de Jovens e Adultos são educação (embora também envolvam ensino)?
Não nos esqueçamos de que, segundo o parágrafo primeiro do artigo primeiro, a lei só se preocupa com a “educação escolar”, que acontece em “escolas”, através do “ensino”. Portanto, a Educação Profissional e a Educação de Jovens e Adultos de que tratamos aqui são escolares, e não “não-formais”, ocorrentes (por exemplo) no contexto do trabalho…
E por que deixar no ar a impressão de que aquilo que fazem (ou “sofrem”) os alunos do Ensino Médio regular ou da Educação Profissional não é “Educação de Jovens”, quando quase todo mundo é jovem na idade em que normalmente cursa um desses caminhos?
Viram o nível da confusão conceitual mesmo no nosso diploma legal maior na área da Educação (vale dizer: Educação Escolar)?
2. Processos Formativos
A LDBEN fala em “processos formativos” no caput do artigo primeiro. Vou tentar esclarecer aqui (admitidamente sem a ajuda da lei, que silencia sobre o assunto) o que seria um processo formativo. Mas vou fazer (como é inevitável) à minha moda.
Tem havido, ao longo do tempo, e continua a haver, muita gente que se incomoda com o conceito de “formação”. Afirmam os implicantes que ele não deve ser considerado basicamente sinônimo do conceito de educação, porque “formar” seria impor a algo (alguém) uma forma (com “o” aberto) que lhe é estranha. Algo como colocar esse algo (alguém) numa forma (com “o” fechado). Ou como pegar as forminhas (de novo com “o” fechado) usadas para fazer bolachinhas (os famosos cookies) e dar à massa disforme a forma de animaizinhos, objetos, etc.
Formar, portanto, seria educar “de fora para dentro”, por assim dizer. Seria, para usar outra metáfora, pegar uma folha de papel em branco (a tabula rasa da filosofia) e nela escrever um texto, ou fazer um desenho. A massinha, no caso, nada tem a ver com a forma que é dada a ela, como a folha de papel em branco nada tem a ver com o texto, ou desenho, que se elabora nela.
Os implicantes preferem ver a educação como um processo que segue a direção oposta, “de dentro para fora” (de novo, por assim dizer). A criança, afirmam, não é objeto, ou matéria prima, da educação, um produto do trabalho do educador (que seria o construtor do produto, agindo como o confeiteiro que faz cookies ou como quem escreve ou desenha numa folha de papel em branco).
A educação, na visão dos implicantes, lida com seres vivos, dotados de natureza e potenciais (talentos naturais) que devemos deixar desabrocharem. Desta forma eles se atualizariam, desenvolveriam capacidades adquiridas e determinados interesses, que deveríamos respeitar… Educar, portanto, seria criar as condições propícias para que aquilo que a criança já é, para o que ela traz consigo – e, oportunamente, aquilo que ela queira fazer de si mesma – tenha livre curso, seja estimulado, apoiado e ajudado.
Porque, afirmam os implicantes, na linha do que uma vez disse Paulo Freire, ninguém educa ninguém… Mas, tampouco, como bem lembra nosso educador maior, alguém se educa sozinho, como se fosse uma árvore que cresce a partir de uma semente jogada à beira do caminho. “Nós nos educamos uns aos outros”, disse Paulo Freire, “em comunhão”, à medida que vivemos.
Confesso que estou entre os implicantes mais ferrenhos. Por isso prefiro usar o termo “desenvolvimento”, em vez de “formação”. A Educação lida com os processos que levam ao desenvolvimento humano e busca garantir que ele aconteça de maneira natural, agradável, levando em conta os talentos naturais e os interesses da criança. Estes, juntos, permitem o desenvolvimento de suas competências e habilidades (isto é, dos seus “talentos adquiridos”), e respeitando sua unicidade, sua liberdade, sua autonomia.
Esses “processos de desenvolvimento” (que ficam no lugar dos “processos formativos” mencionados na LDBEN) são basicamente os que a lei menciona, que podem ser resumidos em quatro:
- os diversos ambientes presenciais de convivência humana em que o objetivo primordial não seja a educação, como a família, a igreja, o trabalho, os locais de lazer etc.;
- as tecnologias de comunicação que nos permitem interagir uns com os outros à distância e, portanto, podem ser descritas como ambientes virtuais de convivência humana interativa (o correio, o telefone convencional, o correio eletrônico, a mensagem textual instantânea [o chat], outras formas de comunicação pela internet, etc.);
- as tecnologias de informação que nos colocam em contato com produtos humanos e, portanto, podem ser descritas como ambientes virtuais de convivência humana não interativa: a imprensa (livros, panfletos, jornais, revistas, internet etc.); a transmissão do som à distância (o rádio, os discos, as fitas, a internet etc.); a transmissão de imagens à distância (o cinema, a televisão, a internet etc.);
- a escola, entendida como um ambiente artificial criado com a finalidade precípua de… Do que, mesmo?
Quero chamar a atenção para três coisas nessa lista.
Primeiro, o fato de que os três primeiros itens abrangem o que podemos chamar de “educação não-formal” – o que a LDBEN chamaria de “educação não-escolar” – que, hoje sabemos, opera ao longo da vida inteira. (É verdade que a tecnologia pode também ser incorporada à educação formal, escolar, mas não resta dúvida de que ela pode ser, e de fato é, utilizada fora dela – razão pela qual, possivelmente, a LDBEN basicamente não dá lhe atenção.)
Segundo, a crescente importância da internet, tecnologia recente, no segundo e no terceiro item.
Terceiro, o fato de que há profundas discordâncias em relação à questão da finalidade primordial da escola. Por isso, os três pontinhos no quarto item.
Para simplificar a questão: a finalidade precípua da escola é ensinar? Ou é criar condições para que os alunos aprendam? A LDBEN assume que a finalidade da escola é ensinar. “Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias”, determina o início da redação.
É verdade que é usado o advérbio “predominantemente”, não “exclusivamente”, mas, na prática, a predominância tem sido virtualmente exclusiva.
Esse fato impede, em minha opinião, que a escola se renove. Ajuda a preservar uma instituição que, na forma atual, é totalmente obsoleta. No artigo seguinte, com a ajuda de Liev Tolstói, vou mostrar como já era obsoleta no século 19.

Nenhum comentário:

Postar um comentário