Crise originária, ‘mensalão’ e STF
Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
Adital
Coloquemo-nos, por
um momento, na pele dos Ministros e Ministras do Supremo Tribunal Federal.
Tiveram que se confrontar com um processo de 60 mil páginas: a Ação Penal 470,
chamado também de "mensalão”. Enfrentaram uma tarefa hercúlea. Após leitura e
meditação do volumoso acervo, impõe-se à Suprema Corte a primeira e desafiadora
tarefa: formar convicção sobre a condenação ou não dos incriminados e o tipo de
pena a ser cominada. Mas quando se trata de tirar o dom mais precioso de um
cidadão depois da vida – a liberdade – especialmente de políticos que ocupavam
altos cargos de governo e que em suas biografias ostentam marcas de prisões, torturas
e exílios por conta da reconquista da democracia, sequestrada pela ditadura
militar, devem prevalecer rigorosamente a isenção e a independência; devem
falar mais alto as provas nos autos que os meros indícios, ilações, a pressão
da mídia e o jogo político. Para conferir ordem à argumentação fez-se mister
criar uma narrativa coerente que, fundada nos autos, sustentasse uma decisão
convincente e justa.
Aqui tem seu lugar
a subjetividade que é o natural e inevitável momento ideológico, ligado à
cosmovisão dos Ministros, à suas biografias, às relações sociais que nutrem e à
sua leitura da política nacional. Isso é livre de crítica.
O sentido de crise
É neste contexto
que me veio à mente uma categoria fundamental da filosofia moderna, pelo menos
desde Kierkegaard, Husserl e Ortega y Gasset: a crise. Para eles e para nós, a crise não é um mal que nos sobrevém;
ela pertence essencialmente à vida. Onde há vida há crise: de nascimento, de
crescimento, de amadurecimento, de envelhecimento e a grande crise da morte. A
pesquisa mostrou que o conceito de crise, em sua gênese filológica, é inerente
à atividade do judiciário e da medicina. Por isso a abordamos no contexto do
"mensalão”. Seu sentido vem do sânscrito, nossa língua originária, do grego e
do chinês.
Em sânscrito, crise vem de kri ou kir que significa desembaraçar (scatter,
scattering), purificar (pouring out) e limpar. De crise vem as
palavras acrisolar e crisol. A crise atua como um crisol (cadinho que purifica o ouro das
gangas); acrisola (purifica, limpa) um
processo vital ou histórico dos elementos que se lhe incrustaram a ponto de
encobrir o seu cerne verdadeiro. Crise designa, portanto, o processo de
liberação do núcleo central da questão, desembaraçada de elementos acidentais.
Depois de qualquer crise, seja corporal, psíquica, moral, interior e religiosa
o ser humano sai purificado, libertando forças para uma vida mais vigorosa e
com novo sentido.
Todo processo de
purificação implica uma de-cisão que
instaura uma cisão entre o verdadeiro
e falso, entre o substancial e o acidental. Dai seu caráter doloroso, não raro,
dramático. De crise vem ainda a palavra critérioque é a medida pela qual se pode discernir o autêntico do inautêntico e o
correto do corrupto.
Em grego crise (krisis, krínein) significa
também a de-cisão num processo judicial. O juiz estuda as acusações, verifica
as provas nos autos, processualmente pesa e sopesa os prós e os contras e deixa
cair a de-cisão. Introduz uma cisão entre a dúvida e a certeza, entre a prova e
apenas os indícios. O mesmo ocorre com uma consulta médica. O médico examina os
sintomas, conjuga os vários elementos e decide: o diagnóstico é esse.
A todo este
processo de amadurecimento de uma decisão ou diagnóstico os gregos chamavam de
crise. Quando se tomou a de-cisão, acaba a crise. Reina a certeza e a
tranquilidade da consciência. Quando um doente supera o "ponto crítico” é sinal
que começou a cura e o médico, em breve, decide dar-lhe alta do hospital.
Efetivamente, na
crise não se trata de opinar sobre
algo mas de decidir sobre algo depois
de um processo de criação de convencimento a partir de provas seguras.
Em chinês, a palavra crise resulta de dois kanjis: um para perigo e outro para
oportunidade. Viver é perigoso (G. Rosa); mas, prenhe de oportunidades. É
sempre perigoso lançar um juízo seja pelo juiz seja pelo médico. Mas todo juízo
cria a oportunidade de tirar a limpo as incriminações, responder às dúvidas e
mediante uma decisão conforme à lei, consolidar a convicção.
Politização do STF?
O que expusemos
designa o conceito ideal de crise (Max Weber) que possui uma função heurística (orientadora).
Na prática, o tratamento da crise é aproximativo e não isento de ambiguidades.
No caso da Ação Penal 470 cabe perguntar: fazer coincidir o julgamento com as
eleições municipais não é entrar no jogo político, oferecendo uma poderosa arma
a um lado dos contendores? Não há o sério risco de com isso se comprometer os princípios
da isenção e da imparcialidade? Utilizar-se da polêmica teoria "do domínio do
fato total” para enquadrar a maioria dentro de um raciocínio lógico-dedutivo,
não empalidece o princípio básico da "presunção da inculpabilidade”? No furor condemnandi visível na linguagem
adjetivada de alguns Ministros, não ocorreu um excesso de imputação?
A verdade é que
réus foram e devem ser condenados por crimes e delitos que cometeram,
irrefutavelmente comprovados, seja do PT seja da base aliada, pouco importa a
importância do cargo e da respeitabilidade da biografia. A lei vale
indistintamente para todos.
Mas os delitos
foram de várias naturezas e em circunstâncias diferenciadas. Pode-se colocar a
todos num mesmo saco, o famoso "domínio do fato” apenas com diferenciações? Cabe
a razão jurídica debruçar-se sobre esta questão crucial.
Seguramente o
julgamento foi legal (segundo as
leis) e moral (realizado por
Ministros conscientes e doutos). Mas ele foi suficientemente ético no sentido
da irrestrita observância dos princípios da isenção, da independência e da
presunção da inocência, livre da forte tendência a condenar? Caso se confirmar
a suspeita de que a condenação de José Genoino e José Dirceu se fez apenas por
indícios e por ilações sem provas suficientes nos autos e por causa disso forem
enviados à prisão, estes podem se considerar "prisioneiros políticos”,
impossível num regime democrático de direito. Dificilmente pode-se escapar da
crítica de um tribunal de exceção e de possível corrupção ética no procedimento
judicial. Há dúvidas a serem dirimidas. À história caberá a última palavra.
Chamamento à conversão e à esperança
Por fim, importa
reconhecer que o PT que porfiou por ética napolítica (políticos responsáveis e honestos) e por ética da política (instituições e procedimentos segundo valores e
princípios), com o "mensalão” de alguns de seus membros, abriu uma ferida no
partido como um todo, que por muito tempo irá sangrar. Muitos, mesmo não
inscritos no partido como eu, havíamos depositado confiança na séria dimensão
ética das práticas políticas do PT. Nós intelectuais, podemos ficar frustrados
face aos delitos eventualmente cometidos, mas o povo confiante não merece
sentir-se traído e ludibriado como tantas vezes na história.
Quem caiu sempre
pode se levantar a recomeçar. É o que cobramos do PT, sem o que perde
credibilidade e dificilmente pode mais se apresentar como alternativa a um tipo
de política que incorpora em seus hábitos a corrupção e o uso indevido do poder
público para garantir vitórias. Criou-se um vazio que clama ser preenchido ou
pelo PT reconvertido ou por outros atores e partidos que levantem a bandeira da
ética e orientam suas práticas políticas por princípios e valores. Nisso nossa
esperança não desfalece.
[Leonardo Boff é
professor emérito de Ética da UERJ e membro da Comissão Internacional da Carta
da Terra].
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