segunda-feira, 29 de outubro de 2012

29.10.12 - Mundo
Minhas lembranças do Vaticano II
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília
Adital
Neste mês de outubro celebramos o 50º aniversário do início do Concílio Vaticano II. A primeira vez que ouvi falar deste concílio foi no ano de 1963. Eu tinha sete anos de idade. Meu pai, católico fervoroso e praticante, assinava uma revista católica. Certo dia ele chegou em casa com um exemplar desta revista. Vi que na capa da revista havia uma fotografia do papa João XXIII. Meu pai, então, relatou que o papa tinha morrido e no lugar dele tinha sido eleito Paulo VI. Com eu já tinha sido alfabetizado por minha mãe, comecei a ler a notícia da morte do papa. Lá pelas tantas o texto dizia que João XXIII tinha sido o papa que convocou e abriu o Concílio Vaticano II.
Sem saber o que era "Concílio Vaticano II” fui perguntar a meu pai. Ele me explicou, então, que era uma reunião dos bispos do mundo inteiro com o papa. Completou a informação dizendo que o bispo da nossa diocese, que eu havia conhecido naquele mesmo ano, tinha ido de navio para Roma, a fim de participar do concílio. Meses depois o bispo foi à minha cidade e presenteou meu pai com um postal colorido e autografado, que tinha a foto do navio no qual ele viajou até Roma.
Fui, então, crescendo e ouvindo outras notícias sobre o Vaticano II. Lembro-me bem do seu encerramento. Era o dia 8 de dezembro de 1965, festa da Imaculada Conceição, padroeira da minha cidade. Como nossa cidade não tinha pároco, o padre da cidade vizinha foi fazer a festa e na homilia lembrou que naquele dia estava sendo encerrado o concílio. Os anos se passaram, entrei no seminário e toda a minha formação foi feita no clima do Vaticano II. Tive a graça de ter como professores teólogos de renome como Zoltán Alszeghy, Carlo Maria Martini, René Latourelle e Joseph Fuchs, todos eles comprometidos com a execução do concílio. Os textos teológicos usados na Universidade Gregoriana eram quase todos de peritos do concílio. Ao concluir a minha formação teológica estava profundamente embebido do espírito do concílio.
Aos poucos fui entendendo a grande revolução provocada pelo Vaticano II. Tudo começa com a superação da eclesiologia jurídica pela eclesiologia de comunhão. E para realizar tal superação o concílio voltou às fontes bíblicas e às fontes patrísticas. Recuperou a Palavra e a verdadeira Tradição. A Igreja é ícone da Trindade e, como tal, não pode ser uma monarquia absoluta comandada por um monarca. Ela é comunhão ou unidade na diversidade, assim como a Trindade é mistério de unidade na diversidade das três divinas Pessoas. Sendo ícone do mistério trinitário, a Igreja é convocada para servir a humanidade e não para ser servida. Por essa razão deve renunciar a toda forma de pompa, de luxo e de ostentação que costuma caracterizar os poderosos deste mundo. Foi convidada pelo concílio a ser pobre como o seu Fundador e, a exemplo dele, cuidar amorosamentedos pobres (LG, 8).
Na sua condição de servidora, a Igreja não apenas ensina e admoesta, mas é também convidada a escutar e a aprender com a humanidade (GS, 41). Porém, para ter a humildade de escutar e de aprender com a humanidade, a Igreja precisa ter consciência de que ela é também peregrina e, por isso, santa "e sempre necessitada de purificação”, tendo a obrigação de procurar sem descanso a penitência e a renovação (LG, 8). Além disso, a sua condição de caminhante e de penitente em busca de conversão deve levá-la a uma abertura que seja capaz de acolher os irmãos e as irmãs das outras igrejas cristãs, sem pretensões e sem arrogância. Deve igualmente acolher as pessoas das religiões não cristãs, dialogando e unindo-se a elas na construção do bem, da solidariedade e da paz. Com relação aos que não acreditam, a Igreja foi convidada a acolhê-los cortesmente no espírito do Evangelho de Jesus (GS, 21).
Ora, tudo isso supõe uma mudança de mentalidade, bem como uma completa reestruturação do estilo de ser Igreja. Por essa razão o Vaticano II repensou o conceito de santidade, vendo-a como vocação universal, para a qual todos os homens e todas as mulheres são chamados. Na variedade de vocações e de ministérios cada um e cada uma é convidado a participar ativamente do sacerdócio de Cristo e do seu seguimento (LG, 41). Neste sentido todas as formas específicas de vocação são importantes, não havendo superioridade de nenhuma delas sobre as demais. A partir desse pressuposto o concílio redimensiona a função dos bispos e dos presbíteros. Estes não estão acima do povo, mas devem exercer o ministério com o povo e no meio do povo. Não são escolhidos para serem separados do povo de Deus, mas para se consagrarem ao serviço dele (PO, 3). Na mesma perspectiva é pensada a vocação e a missão da vida consagrada. E os cristãos leigos e as cristãs leigas deixam de ser "ovelhinhas”, cuidadas e protegidas pelos pastores, para serem protagonistas da missão. A atividade evangelizadora dos leigos e das leigas é indispensável para a Igreja, e o direito e dever de evangelizar não nasce de uma permissão da hierarquia, mas da união deles e delas com Cristo, através do batismo e da crisma (AA, 2-3).
Todos estes elementos levaram o Vaticano II a repensar também o conceito e a prática da missão da Igreja. Esta não é mais vista como atividade para a implantação da Igreja Católica, mas como continuidade da missão do Filho e do Espírito que chamam a humanidade para ser Povo de Deus e para participar da vida divina (AG, 2-5).
E como toda renovação e conversão eclesial requerem um alimento constante e uma fonte abastecedora, o Vaticano II iniciou sua atividade revendo por completo a Liturgia da Igreja. Tal revisão começou pela teologia litúrgica e chegou também às celebrações. A liturgia retomou sua dimensão trinitária e foi bastante simplificada. Pautou-se pelo princípio de que ela é o culto a Deus, oferecido pelo Corpo de Cristo, exigindo a participação de todos e de todas. A celebração deixou de ser coisa de padre para ser ação da comunidade. E para que a comunidade participe ela precisa entender o que celebra. Por essa razão a liturgia volta a ser celebrada na língua do povo. Um detalhe que parece secundário, mas que, na verdade, funciona como uma espécie de paradigma de toda a renovação conciliar.
Sem dúvida alguma não estávamos preparados o suficiente para acolher ao mesmo tempo tanta beleza e tanta riqueza. Por isso, logo após o encerramento do concílio, já começaram os medos, os recuos e as dissidências. Porém, não podemos permitir que aquele mofo eclesiástico anterior ao concílio volte a imperar na Igreja Católica Romana. Seria traição e incapacidade de ler os sinais dos tempos. As intuições do Vaticano II deveriam impelir a Igreja Católica do século XXI a ir além dele mesmo, ao invés de retroceder e fechar-se no conservadorismo e na eclesiologia jurídica.
[Autor de O Evangelho da Vocação. Dimensão vocacional da evangelização. São Paulo: Loyola, 2003].

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