segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Nota pública do CTI sobre a questão fundiária Guarani-Kaiowá

É importante que essa comoção seja acompanhada de um conhecimento efetivo dos nós que emperram os processos de regularização das terras dos Guarani e Kaiowá
29/10/2012


É muito positiva e surpreendente a comoção que uma carta manifesto escrita pela comunidade Guarani Kaiowá da aldeia Pyelito Kue, localizada no complexo de Iguatemi Pegua, provocou na opinião pública em relação ao genocídio que há décadas se instalou contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul. Diversas pessoas que agora tomam conhecimento da situação inaceitável que enfrentam os Guarani e Kaiowá no cone sul do Estado têm se manifestado nas redes sociais repudiando o genocídio e a conivência de diversos setores dos governos estadual, federal e do Poder Judiciário. Personalidades públicas e entidades têm feito o mesmo. A repercussão do tema, embora não ganhe o espaço que deveria nos grandes meios de comunicação (também coniventes), traz a esperança de que uma ampla divulgação desta tragédia possa trazer a força que falta para a regularização das terras tradicionais reivindicadas pelos Guarani e Kaiowá no MS, única forma de resolução do conflito.
O que é surpreendente é que ações judiciais contra os indígenas no MS, despejos, assassinatos, violência e racismo são há muito o dia a dia dessas comunidades e nunca tanta gente se deu conta disso. Por isso, é importante que essa comoção seja acompanhada de um conhecimento efetivo dos nós que emperram os processos de regularização de suas terras, para que a vontade de ajudar não se esgote rapidamente, como costuma ser o caso, numa sensação de que o problema é insolúvel e numa descrença generalizada em relação à capacidade e disposição do poder público em quitar a dívida monstruosa que tem com os Guarani e Kaiowá.
É evidente que a regularização das terras indígenas no Mato Grosso do Sul, assim como ocorre em outros Estados, esbarra nos interesses e numa postura intransigente de parte dos ruralistas, que hoje têm peso enorme na correlação de forças dos governos federal e estadual, e, sobretudo, têm meios financeiros para exercer uma pressão esmagadora para que o Poder Judiciário emperre ao máximo os processos.
Esses são os dois nós que emperram os processos e que precisam ser desatados ao mesmo tempo para que os índios de fato tenham posse plena das terras: 1) a falta de prioridade orçamentária e política do Governo Federal para finalizar os estudos de identificação e delimitação das terras indígenas no MS; 2) a conivência do Poder Judiciário, muitas vezes curvado à pressão e aos interesses dos ruralistas no sentido de paralisar os processos, nas suas mais diversas fases.
Nesse contexto, o CTI acredita que seria preciso um mecanismo que permitisse “convencer” os proprietários de boa-fé a retirar as ações contra os processos de regularização das TIs e que ao mesmo tempo permitisse ao Governo Federal levar a cabo esses processos dentro dos marcos do artigo 231 da Constituição Federal de 1988 (leia mais). Ocorre que esse mecanismo já existe no Mato Grosso do Sul, e nenhum dos setores majoritários do Governo Federal que alegam ter interesse em resolver a questão se empenhou em utilizá-lo.
Fica evidente, portanto, que falta muita vontade política do Governo Federal e é preciso que a pressão da opinião pública se direcione no sentido de provocá-lo a usar dos mecanismos que já tem em mãos para resolver a questão.
Explicando melhor: o Governo do Mato Grosso do Sul aprovou a Lei Estadual nº 4.164/2012, que “autoriza o Poder Executivo a Criar o Fundo Estadual de Terras Indígenas”, o FEPATI. Esse mecanismo permite, sem qualquer alteração da Constituição de 1988, a criação de um fundo financeiro para indenizar proprietários de boa-fé cujos imóveis incidam sobre as terras indígenas no Mato Grosso do Sul. Pela Constituição de 1988, Artigo 231, § 6º, os títulos emitidos sobre terras tradicionalmente ocupadas são nulos e, portanto, os imóveis a que se referem não podem ser indenizados. Através dessa Lei o Estado do Mato Grosso do Sul implicitamente reconhece que emitiu títulos inválidos e pretende indenizar os proprietários de boa fé pagando-lhes pelo valor da chamada “terra nua” (posto que as “benfeitorias de boa fé” erigidas nos imóveis são indenizáveis pelo parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição).
Esse nó da indenização da chamada “terra nua” tem motivado o Governo Federal, sobretudo o Ministério da Justiça, e os próprios ruralistas a justificar uma suposta necessidade de alterar a Constituição Federal de 1988 para resolver os conflitos mais acirrados envolvendo terras indígenas, como os do Mato Grosso do Sul. Com isso eles jogam uma cortina de fumaça no problema, fingindo buscar uma solução conciliatória, mas pretendendo na verdade restringir ainda mais os direitos dos povos indígenas no Brasil inteiro.
Mas uma possível solução já está nas mãos do Governo, por meio da recém aprovada Lei Estadual 4.164, e o Ministério da Justiça nada faz para tentar buscar recursos para o FEPATI e negociar com os proprietários de boa fé a retirada das ações judiciais. Ao contrário, é conivente com medidas de flagrante desrespeito aos índios, que só fazem aumentar o problema, como a polêmica e inconstitucional Portaria 303, da AGU.
Conclamamos todos a pressionar o Ministério da Justiça, a Casa Civil e a Presidenta para reunir seus esforços no sentido de buscar recursos para o FEPATI, e negociar a retirada das ações judiciais contra os índios! Se o problema é indenizar proprietários de boa-fé (que não são tantos assim, se forem julgados aqueles que realizam ou realizaram ações violentas contra os índios), a saída já está nas mãos do Governo. Qualquer alegação ao contrário, ou propostas irresponsáveis de alteração do artigo 231, são meras desculpas e devem ser combatidas.
Se houver interesse efetivo do Governo, uma campanha internacional para emponderar e angariar recursos para o FEPATI, negociando a retirada das ações judiciais, poderia contribuir decisivamente para garantir aos Guarani e Kaiowá a regularização e usufruto efetivo de suas terras tradicionais, resgatando a dignidade desses povos.

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