"Se Francisco Xavier e praticamente todos os missionários e missionárias até a primeira metade o século XX eram obrigados, em nome da Igreja, a negar a possibilidade de salvação para os não cristãos, o Vaticano II trouxe, no dizer de Bento XVI, “alguma forma de descontinuidade”, afirma o teólogo Paulo Suess, em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU) On-Line.
Tanto isto é verdade que “a Fraternidade Pio X percebeu corretamente que o Vaticano II representa uma verdadeira reforma que inclui continuidade e ruptura”
Por ocasião do 50º aniversário do início do Concílio Vaticano II, o assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), descreve a gênese, a trajetória e as rotas do importante decreto Ad Gentes, que redesenhou a missão da Igreja.
Segundo Paulo Suess, o Concílio Vaticano II instou "a igreja a deixar a realidade do mundo e entrar na realidade do mundo. E essa realidade tem várias dimensões: a dimensão macrocultural da modernidade secularizada e a dimensão da convivência concreta no mundo pluricultural".
Trata-se, continua Suess, "de construir duas pontes de mão dupla: uma entre Igreja e a dimensão universal das conquistas do mundo moderno, e outra, entre Igreja e o mundo local e cultural, onde o povo vive, se encontra e comunica".
Paulo Suess nasceu na Alemanha. É doutor em Teologia Fundamental com um trabalho sobre Catolicismo popular no Brasil. Em 1987 fundou o curso de Pós-Graduação em Missiologia, na Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, onde foi coordenador até o fim de 2001. Recebeu o título de Doutor honoris causa, das Universidades de Bamberg (Alemanha, 1993) e Frankfurt (2004). É assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor no ciclo de pós-graduação em missiologia, no Instituto Teológico de São Paulo (ITESP). Entre suas publicações, destaca-se Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007).
Confira a entrevista.
A partir da perspectiva da Igreja em Missão, como o senhor analisa o Concílio Vaticano II, evento que, neste ano, celebra 50 anos da sua abertura?
Paulo Suess – A missão é estrela-guia na constelação dos 16 Documentos do Concílio que emergiram de demandas prático-pastorais. Práticas litúrgicas, leituras bíblicas, convivência ecumênica, necessidades de uma nova presença no mundo operário e indígena apontaram para a necessidade de uma reconfiguração das relações entre Igreja, mundo moderno, culturas e humanidade. Novas relações, sobretudo com os pobres e os outros, exigiram repensar as linhas pastorais até então consideradas “legais” e forjaram, como fio condutor, a missão voltada ao povo e ao mundo na perspectiva de aggiornamento e encarnação. O aggiornamento à modernidade e a encarnação nos contextos pluriculturais representam uma verdadeira “virada popular”. Virada popular significa contemplar a Deus não em alturas abstratas, mas no rosto da humanidade crucificada e ouvir a Sua voz através dos sinais de Deus no mundo.
O decreto Ad Gentes é o documento conciliar que trata da atividade missionária da Igreja? Qual a gênese desse documento no processo do Concílio?
Paulo Suess – Os impulsos elementares para a teologia da missão e a pastoral missionária desabrocharam nas Constituições sobre a Igreja (Lumen Gentium; Gaudium et Spes) e a Liturgia (SC), nos decretos sobre o Ecumenismo (UR) e a Vocação dos Leigos (AA), e nas Declarações sobre a Liberdade Religiosa (DH) e as Religiões Não Cristãs (NA). O “Decreto Ad Gentes sobre a atividade missionária da Igreja” apenas sintetizou essas dimensões que ganharam a sua força radical pela revisão da eclesiologia do Vaticano I. Nos processos que levaram à redefinição da missão, observa-se um deslocamento de uma Igreja que tem missões territoriais, pelas quais faz coletas e pede orações, para uma Igreja na qual a missionariedade e a “natureza missionária” dos batizados representam a orientação fundamental de todas as suas atividades.
O anúncio do Vaticano II, na festa da conversão do Apóstolo Paulo, die 25 de janeiro de 1959, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, tem um profundo significado simbólico. Data e lugar escolhidos pelo papa João XXIII apontam para uma igreja em estado de conversão “fora dos muros” da cristandade.
Foi pela primeira vez, na história da Igreja, que um concílio sentiu a necessidade de elaborar um documento sobre a missão. Contudo, parecia tudo muito fácil e, praticamente, já resolvido antes do Concílio. O cardeal Agagianian, prefeito da então chamada “Congregação pela Propagação da Fé”, não se cansou de afirmar que no campo missiológico todas as questões estavam resolvidas através das encíclicas missionárias dos últimos papas. Missão e missiologia, que entraram no concílio como anexos ao campo da pastoral, saíram do processo conciliar como teologia fundamental e núcleo teológico-pastoral central do Vaticano II.
Ao texto definitivo de Ad Gentes precederam sete versões que permitem acompanhar as lutas pelo novo significado do paradigma “missão” (cf. P. Suess, Introdução à teologia da missão, 3ª ed., Petrópolis, 2011, p. 122 et seq.). O lugar do “mundo”, da “missão” e da “liberdade religiosa” na Igreja foi disputado até o último momento do Concílio. Finalmente, poucos dias depois da promulgação da “Declaração sobre as religiões não cristãs” (NA, 28.10.65), na quarta e última sessão e no último dia (7-12-1965), o “Decreto Ad Gentes sobre a atividade missionária” foi promulgado por Paulo VI, junto com a “Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo” (GS) e a “Declaração sobre a liberdade religiosa” (DH). Ad Gentes recebeu 2.314 votos “sim” e apenas 5 votos “não”.
Quais são os elementos ou conteúdos fundamentais do decreto Ad Gentes?
Paulo Suess – Os conteúdos fundamentais do decreto Ad Gentes não devem ser vistos isoladamente dos outros documentos do Concílio. O “pacote” missiológico do Vaticano II pode ser resumido em alguns passos, revisões e conversões de uma caminhada pós-colonial, sempre ameaçada por regressões:
– do eclesiocentrismo à centralidade do Reino de Deus;
– de uma identificação da Igreja com a hierarquia para uma Igreja “Mistério”, “Povo de Deus” e “Instrumento de salvação”;
– de um laicato auxiliar e subordinado do clero para um laicato que participa do sacerdócio comum dos fiéis (LG 34), do múnus profético de Cristo (LG 12; 35,1) e do apostolado. O Povo de Deus é marcado por uma igualdade constitucional (cf. LG 37);
– da opção abstrata pelo “homem” para sujeitos com rostos concretos. O povo de Deus integra os pobres e tem uma missão pública, histórica, profética e fraterna;
– De uma Igreja
= que olhou na celebração eucarística para a parede e falava em latim
= que entendeu a sua teologia como explicação de dogmas e
= que em sua pastoral estava amarrada a padrões culturais da Europa, para uma Igreja versus populum, que podemos chamar de “virada popular”;
– do território da missão à natureza missionária da Igreja povo de Deus (desterritorialização da missão);
– do ter missões ao “viver em estado de missão” (AG 2; DAp 213);
– da missão ad gentes à missão intergentes (diálogo inter-religioso, ecumênico e intercultural), que significa um passo da unilateralidade entre doador e receptor dos benefícios da missão para a reciprocidade nas relações missionárias;
– do monopólio salvífico à partilha da graça da salvação: se Francisco Xavier e praticamente todos os missionários e missionárias até a primeira metade o século XX eram obrigados, em nome da Igreja, a negar a possibilidade de salvação para os não cristãos, o Vaticano II trouxe, no dizer de Bento XVI, “alguma forma de descontinuidade”;
– da supervisão à inculturação. A “supervisão” nos afasta do chão e dos rostos concretos dos pobres. A eficácia missionária não está nos instrumentos utilizados nem na liderança em “nossas obras”, mas na coerência entre a mensagem do Reino e sua contextualização, também através do nosso estilo de vida.
A passagem da supervisão para a inculturação atinge, obviamente, o campo onde o povo celebra sua vida, ou seja, o campo litúrgico. Muitas reformas litúrgicas pós-conciliares, feitas por “supervisores” sem conhecimento e participação do povo, estão caminhando para o distanciamento pré-conciliar. A Missa Tridentina não é um sinal que aponta para uma Igreja autóctone encarnada na vida do povo. A “virada popular” do Vaticano II clama por essa Igreja autóctone que rompe com qualquer tipo de tutela colonial.
A partir do Concílio, entre avanços e recuos, como o senhor avalia os passos dados pela Igreja na sua relação com o mundo?
Paulo Suess – Hoje, a Igreja Católica reúne vários setores de mentalidades, práticas pastorais e teologias diferentes, o que torna difícil falar de “passos dados pela Igreja”. Esses passos de setores espiritualistas e realistas, fundamentalistas e movimentos militantes, de ordens religiosas e novas comunidades se movem em direções diferentes. Segundo o respectivo setor, podemos falar de recuos ou avanços ao mesmo tempo. Ultimamente observa-se certa aversão do setor hegemônico contra a realidade concreta. Nossa metodologia do ver-julgar-agir, que acompanhou a teologia indutiva latino-americana e que ainda foi positivamente mencionada na Mater et Magistra (1961) de João XXIII (MM 235), sofreu, desde Santo Domingo (1992), na maioria dos documentos, restrições pela nova abordagem do “crer-ver-agir”. Em seguida, muitas vezes se confundiu os níveis diferentes do crer, que é teológico, e do ver, que é sócio-histórico.
Mas a história nunca é linear. Muitas conquistas do Vaticano II estão presentes em nossa realidade pastoral e nos documentos produzidos nesse tempo pós-conciliar, apesar de certo descompasso entre documentos e a própria prática missionária. Somos uma Igreja de apóstolos e mártires, hoje com poucos profetas. Precisamos desinibir a “virada popular”.
Precisamos reescrever os tratados sacramentais – matrimônio, penitência, sacerdócio –, que clamam por um aprofundamento que tome o Vaticano II como ponto de partida. 70% das comunidades na Amazônia estão sem eucaristia dominical. Aparecida cobrou à Igreja de “repensar profundamente e relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais” (DAp 11). “Fidelidade”, nessa reconstrução da “virada popular”, só faz sentido se houver “audácia” na recepção e na projeção do Vaticano II. Sem audácia, a tradição se torna tradicionalismo e prisão e não haverá tradução, encarnação e comunicabilidade do cristianismo em novos contextos micro e macroculturais.
Exige-se, hoje, um discernimento audaz tanto na assunção dos múltiplos projetos de vida, que culturas regionais representam, como na avaliação de conquistas da modernidade que, com sua dupla face de progresso e violência, beneficiam e ameaçam a sobrevivência da humanidade. A audácia pode ser confundida com adaptações apressadas, com modernizações meramente técnicas, com a corrida atrás do sempre novo, sem consciência histórica. Missas e ministros midiáticos, alinhados a padrões de marketing, podem destruir o sagrado.
Como a Igreja latino-americana traduziu para a sua realidade as decisões conciliares, sobretudo ao que diz respeito à Igreja missionária?
Paulo Suess – A “virada popular” como aggiornamento significa para a igreja deixar a realidade do mundo e entrar na realidade do mundo. E essa realidade tem várias dimensões: a dimensão macrocultural da modernidade secularizada e a dimensão da convivência concreta no mundo pluricultural. Aggiornamento expressa a vontade de construir duas pontes de mão dupla: uma entre Igreja e a dimensão universal das conquistas do mundo moderno, e outra, entre Igreja e o mundo local e cultural, onde o povo vive, se encontra e comunica.
O Concílio nomeou essas tentativas de aproximação respeitosa aos povos e ao mundo com algumas palavras balbuciantes, como “adaptação” (SC 37s; GS 514), “autonomia da realidade terrestre” (GS 36; 56) e da cultura, “sinais do tempo” (GS 4; 11), e “diálogo” (CD 13; UR 4), “encarnação” e “solidariedade” (GS 32). Em nossa caminhada teológico-pastoral latino-americana traduzimos essas palavras como “opção pelos pobres” e “libertação”, em Medellín (1968), “participação”, “assunção” e “comunidades de base”, em Puebla (1979), como “inserção” e “inculturação”, em Santo Domingo (1992) e como “missão”, “testemunho” e “serviço” de uma Igreja samaritana e advogada da justiça e dos pobres, em Aparecida (2007).
Nenhuma dessas palavras descreve a totalidade do projeto pastoral do Vaticano II, mas seu conjunto representa uma síntese daquilo que esse concílio queria ser: um farol da luz de Cristo no meio dos povos e do mundo.
Algo significativo aconteceu na IV Conferência do Episcopado Latino-Americano em Santo Domingo. O tema da “cultura cristã”, quer dizer, a reflexão sobre uma cultura que não existe, foi substituída nas Conclusões por “evangelização inculturada” (SD 292,3). E no decorrer dessas Conclusões encontra-se o imperativo categórico da evangelização: “Toda evangelização há de ser, portanto, inculturação do Evangelho. (...) A inculturação do Evangelho é um imperativo do seguimento de Jesus e é necessária para restaurar o rosto desfigurado do mundo” (cf. LG 8; SD 13).
Após 50 anos, como o senhor analisa a atualidade do Concílio, sobretudo na perspectiva da Igreja em Missão?
Paulo Suess – Como evento histórico, o Concílio é ponto de partida. Reinterpretações fazem parte da fidelidade aos seus documentos e da audácia da caminhada pastoral que a história exige (cf. DAp 11). Podemos distinguir diferentes “convivências” com o Vaticano II:
1º: a não recepção pelo grupo em torno da chamada Fraternidade Pio X. Esse setor percebeu corretamente que o Vaticano II representa uma verdadeira reforma que inclui continuidade e ruptura;
2º: a recepção modernizante, porém essencialmente conservadora, sem assunção dos questionamentos do mundo moderno, que o Concílio fez;
3º: a recepção conclusiva, como se o Vaticano II fosse um ponto final ou uma trincheira que nos permite, em pleno inverno eclesial, esperar tempos mais favoráveis. Esse setor procura salvar afirmações fundamentais do Concílio – o “máximo” alcançável, o “sustentável” – sem a dinâmica histórica que o considera como ponto de partida;
4º: a recepção seletiva e estratégica pelo setor de movimentos pentecostais e fundamentalistas, que grosso modo dispensaram a “iluminação” conciliar, por confundirem com ilustração; sinais importantes deste setor são a emocionalidade, a visibilidade através de eventos de massa e o personalismo de um líder sedutor, popular e populista ao mesmo tempo. Sua presença maciça na mídia se explica pelo alinhamento sistêmico e político, por promessas milagrosas e pelo esquecimento da cruz. Esse setor reforça a alienação das massas populares e as afasta do mistério pascal;
5º: a recepção dinâmica na linha de uma pastoral de libertação e participação dos pobres, assumida por Medellín e as conferências seguintes. Bandeiras como CEBs, inculturação, Igreja autóctone com teologias e liturgias diferenciadas, diálogo, liberdade religiosa, macroecumenismo só terão futuro e serão hasteadas nessa perspectiva da historicidade do evento Vaticano II. Quem quer “segurar” o Concílio como ponto de chegada destrói suas intenções profundas.
À luz do Concílio Vaticano II, o que significa ser Igreja missionária hoje?
Paulo Suess – Ser Igreja missionária, hoje, significa ser Igreja. Não existe uma Igreja não missionária. E ser Igreja significa ser Povo de Deus, povo messiânico, profético, sacerdotal e testemunhal em estado permanente de conversão institucional, pessoal e estrutural; significa assumir de perto a opção pelos e com os pobres e os “outros”, com os quais trabalhamos e convivemos com o cultural e o materialmente disponíveis para colaborar na construção de um mundo para todos. Ainda estamos longe de fazer do lembrete “natureza missionária”, que o Concílio nos deixou, uma realidade pastoral. Ainda estamos longe de ver na missão não apenas uma “tarefa opcional”, mas de assumi-la como “parte integrante da identidade cristã” (DAp 144).
Missão é visão do horizonte utópico da libertação. A libertação é possível. A justiça de Deus não é a justiça da estátua com olhos vendados. Deus ouve o clamor dos pobres, vê o sofrimento dos migrantes e convoca com a sua palavra os que a confusão babilônica dos macrodiscursos excluiu do convívio social. Missão é visão acoplada à ação. Com nossa indignação profética percebemos que tudo pode ser diferente.
A partilha e a opção pelos pobres apontam para tarefas básicas neste mundo: a redistribuição dos bens feita pelos pobres e o reconhecimento dos outros e das outras em sua alteridade. Essa visão se transforma em ação através da presença no meio dos outros pobres e através de palavra, profética e misericordiosa, ao mesmo tempo.
A Missão produz sinais de justiça e cria imagens de esperança. No mundo, onde os privilegiados perdem o sentido de vida e os excluídos perdem a visão de um horizonte e a força de resistência, o querigma missionário elementar é a esperança que emerge da presença e da solidariedade. |
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