A Mãe Terra
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
De 20 a 22 de junho deste ano, no Rio, será realizada a Conferência da ONU sobre desenvolvimento sustentável, vinte anos após a ECO-92. Sou dos céticos em relação à vontade e à capacidade de nossos governantes – atolados em crises e compromissos com os grandes conglomerados econômico-financeiros que dominam a economia globalizada – chegarem a acordos à altura dos desafios que a humanidade tem pela frente. Cabe à cidadania fazer a sua parte, do local ao mundial. É uma necessidade inadiável indignar-se e agir contra um modo de produzir e consumir que serve para poucos e, ao mesmo tempo, destrói as bases da vida. Com esta crônica, no contexto que antecede a Conferência da ONU, inicio uma série de pequenas reflexões sobre a necessária revisão dos fundamentos em torno dos quais nos organizamos como sociedades humanas.
Junto-me a muitos, especialmente no processo Fórum Social Mundial, e endosso o diagnóstico de que estamos diante de uma crise de civilização, caracterizada pela perda de capacidade de resposta do sistema dominante, hoje globalizado, diante dos desafios planetários, tanto de preservação da integridade do planeta Terra e da vida para futuras gerações como da enorme injustiça social e ambiental intra e interpovos, hoje. Os fundamentos, a legitimidade e os rumos desse modelo capitalista industrial, produtivista e consumista estão derretendo e podem acabar tornando irreversível o processo de destruição ecológica e social.
Na crise da civilização atual, uma questão que emerge como condição sine qua non é a necessidade de recompor e reconstruir a nossa relação com a natureza. Afinal, somos parte da biosfera, somos natureza nós mesmos, natureza viva dotada de consciência. Somos dependentes uns dos outros, múltiplos e diversos, com capacidade de criar significados e direções, de incidir e adaptar a natureza às nossas necessidades. Somos, no entanto, parte da própria natureza, que nos impõe limites éticos no tratá-la, cuidá-la, preservá-la e comparti-la entre todos e todas. Interagir e trocar com a natureza, com a sua complexidade de sistemas ecológicos é, por definição, o viver. Por isso, precisamos resgatar o conceito filosófico e político fundante de Mãe Terra atribuído ao planeta, ainda presente em muitas culturas e no imaginário popular. Planeta único e mãe de todos os humanos, de toda a vida que conhecemos, a integridade do planeta Terra está ameaçada pela civilização capitalista industrial. A privatização, a mercantilização e a comodificação de tudo, a manipulação da vida e dos elementos, sem limites, pela biotecnologia e nanotecnologia, todos são processos que ameaçam a nossa grande mãe comum, a Terra – hoje e para futuras gerações. A tal economia verde, que está na agenda da Rio+20, nada mais é que uma aposta dos grandes conglomerados econômico-financeiros para transformar a biodiversidade e os elementos naturais em frente de uma nova e radical expansão capitalista. Estamos diante da possibilidade de sermos levados para o caminho da destruição sem retorno. Isto é o contrário de sustentabilidade.
Para ser sustentável, a civilização humana tem que renunciar ao antropocentrismo como filosofia, ética e religião e mudar radicalmente a sua aposta nas soluções da ciência e da técnica para violar e dominar a Mãe Terra a todo custo, tudo em nome da acumulação, do ter mais e mais, gerando desigualdades sociais e exclusões de todo tipo, com muito sofrimento e privações para bilhões de seres humanos. A primeira tarefa que decorre daí é desativar a máquina de produção e acumulação de riqueza material e financeira atual. O desenvolvimento, que tem como condição o crescimento contínuo, é a máquina do capitalismo. Ele combina apropriação e uso sem limites da natureza, vista como mera depositária de recursos, com a exploração e dominação dos que trabalham, tudo em nome da acumulação de lucros. A questão ética central aqui é: como abandonar valores e um estilo de vida do ter mais, produzindo ao mesmo tempo sempre mais luxo e pobreza, para dar lugar ao ser mais feliz, mais solidário, mais consciente das responsabilidades em regenerar, reproduzir e preservar a integridade da base natural, compartindo-a como a grande Mãe Terra, com todos de hoje e com as futuras gerações?
A vida, toda forma de vida, tem o direito fundamental de existir, bem como os complexos sistemas ecológicos que integram e regulam o planeta Terra. A Conferência Rio+20, ao invés de pensar em novas frentes de grandes negócios para alimentar o crescimento, com a tal economia verde, poderia considerar seriamente as fronteiras planetárias, o espaço seguro para a humanidade florescer.
Segundo renomados cientistas, as fronteiras planetárias para a ação humana – que, uma vez ultrapassadas, podem provocar uma mudança ambiental irreversível, com efeitos catastróficos – são:
- mudança climática;
- acidificação dos oceanos;
- concentração estratosférica de ozônio;
- emissões atmosféricas de ozônio;
- fluxos biológicos, geológicos e químicos (interferência do fósforo e do nitrogênio);
- uso global da água fresca;
- mudanças no sistema de uso da terra;
- perda de biodiversidade;
- poluição química.
Essas fronteiras estão mais detalhadas em: Resilience Alliance. Planetary boundaries: exploring the safe operations space for humanity. Ecology and Society, nº 14(2), p. 32. Disponível em: http://www.ecologyandsociety.org.
Esta me parece uma agenda possível e necessária para tratar a Mãe Terra como ela merece. A tarefa é urgente. Seremos capazes de mudar o rumo do desastre?
Publicado em 28 de fevereiro de 2012
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