Meditação bíblica, sábado, 15 de junho 2013
Neste
dia, encerrei o retiro com o grupo de padres anglicanos de São Paulo e
comecei o retiro (vai até amanhã) com leigos/as da mesma diocese. Um
grupo de 35 pessoas. Estamos meditando sobre o que seria uma
espiritualidade laica e para leigos na Igreja e no mundo, hoje. Sempre
aprendo muito com esses grupos, tanto pelo testemunho de fé (às vezes,
me surpreendo ao ver a maturidade das pessoas das comunidades eclesiais,
mesmo em meio a certas imaturidades do clero e dos pastores. O povo
permanece fiel e resiste na fé. Acho isso uma graça divina muito
grande.
Hoje,
reparto com vocês a reflexão quem no livro "Boas notícias para todo
mundo", (Conversa com o evangelho de Lucas), faço sobre o texto do
evangelho lido nesses domingos na Igreja
– Jesus e a
pecadora pública (Lc 7, 36 – 50)
Conforme Lucas,
a relação de Jesus com os fariseus era boa e tranquila. Ele aceitava até
convites para comer na casa dos fariseus, o que é sinal de certa intimidade. A
tradição anterior a Lucas (Mc 14, 3- 9 e Mt 26, 6- 13). conhecia uma cena
parecida com essa: a unção em Betânia na casa de Simão, que estes relatos
chamavam de “o leproso”. O relato era ligado à paixão de Jesus como uma
profecia (“essa mulher prepara o meu corpo para a sepultura”). A tradição
posterior (principalmente Santo Agostinho e São Gregório Magno) identifica essa
mulher “pecadora” com a “mulher adúltera” de João 8, como se todo pecado fosse
sexual e fosse adultério. Identificou ainda com a figura de Maria Madalena, que,
por sua vez, muitos confundem ainda com
Maria de Betânia, irmã de Lázaro (Jo 12). Quanto preconceito machista e
moralista se esconde por trás dessas confusões. Por que fazer de personagens
como Maria Madalena, a apóstola dos apóstolos e como a contemplativa Maria de
Betânia, imagens de mulheres depravadas que Jesus “teria convertido”? Por trás
disso, tem uma concepção terrível do corpo da mulher e uma concepção de
sexualidade diferente da atual. Entretanto, a comunidade de Lucas dialoga com
outras culturas. Talvez por isso, tira essa história do contexto da paixão de
Jesus e o coloca agora neste contexto que mostra Jesus abrindo fronteiras para
o anúncio do Reino. Ao colocar este relato nesse lugar da narrativa do conjunto do evangelho, Lucas o torna um “resumo”
dos diversos contatos de Jesus com pecadores e pessoas antes consideradas
excluídas da salvação. A mulher é uma dessas categorias e, no conjunto do
evangelho, ela tem muita importância. Este relato se liga ao anterior, sobre o
fato de Jesus comer com pecadores e gente de má vida. Agora, o Evangelho mostra
isso concentrado em uma pessoa duplamente marginalizada: ela é, ao mesmo tempo, mulher e pecadora
pública.
Jesus aceitar
“comer” com o fariseu significa que estabelece uma relação de aliança com o tal
homem. Conforme o texto, o fariseu tem convidados, companheiros do seu grupo.
Jesus, não. Está sozinho. E aí, há uma surpresa: uma mulher pecadora pública
entra naquele ambiente. Duas vezes, o texto diz: “Eis uma mulher e pecadora”
(v. 37). Há uma nota de surpresa, embora sem qualquer comentário. Já vimos que,
na sociedade de Jesus, a mulher vivia marginalizada. Não podia participar da
sinagoga, nem ser testemunha em um julgamento. A mulher não era plenamente
cidadã. É claro que, na sociedade de hoje, pode não se compreender bem o que o
texto quer dizer ao chamá-la de “pecadora”. Poderia ser uma adúltera, como é o
caso de João 8, ou poderia ser uma prostituta, sim. Mas, essa tal mulher de que fala o texto do evangelho pode também ser uma
parteira que lida diariamente com sangue humano; ou ser simplesmente uma mulher
casada com um estrangeiro de outra religião, ou ainda uma mulher doente com
algum tipo de hemorragia. Todas essas podem ser chamadas pelo texto de
“pecadoras”. A noção de pecado era uma noção mais legal e ritual do que moral.
No mundo de Jesus, a realidade da mulher era essa. Em alguns círculos, havia um
começo de resistência e nessa cena transparece uma realidade de inconformismo e
de subversão das normas e costumes vigentes. A mulher, “ao saber que Jesus estava
lá”, entra naquela casa e toma a iniciativa de alguns gestos que o Evangelho
descreve em três verbos: “regar/ enxugar, beijar e ungir”.
Naquela época, o
fato de uma mulher soltar os cabelos em público já era um gesto de
independência. Para a cultura antiga, o gesto de tocar nos pés de Jesus é pouco comum e muito corajoso. E o texto deixa
claro que Jesus não se retrai nem se afasta, nem rejeita. Acolhe a moça. Interpreta o seu gesto como um sinal de
carinho e amor. Jesus interpreta o seu gesto como uma prova da gratidão que ela
sente por ter sido perdoada. “Ela muito amou porque muito lhe foi perdoado”.
Mas, é importante notar que ela manifesta essa gratidão com seu corpo, não como
objeto de “pecado” e sim como instrumento de comunhão e salvação. O próprio
corpo feminino se torna meio de graça e salvação e não como alguns comentadores
acentuariam “instrumento de pecado”.
O texto se concentra mais sobre
a relação de Jesus com o fariseu e não sobre a relação com a mulher. O fariseu
se revela escandalizado não pelo fato de que a mulher tenha entrado em sua
casa, mas em ver que Jesus se deixa tocar por aquela mulher. Quem toca uma
pessoa impura fica também impuro. O fariseu e seus companheiros fazem a Jesus
duas censuras: primeiramente, põem em dúvida que Jesus seja profeta. Depois, se
perguntam como ele pode até “perdoar pecados”? (7, 49). É uma crítica secreta que ninguém expressa.
Jesus toma a iniciativa de conversar sobre o assunto através de uma parábola. Essa
tem elementos em comum com a história que, antigamente, o profeta Natã tinha
contado ao rei Davi (Cf. 2 Sm 12, 1- 10). “Era uma vez dois homens...” No
primeiro tessamento, era Davi que deveria julgar. Agora, o próprio Simão deve
decidir e julgar... Ambos, tanto Davi, como o fariseu Simão se condenam por suas próprias
palavras. A parábola dos dois devedores perdoados mostra como Jesus interpreta
o fato: Jesus não diz que a mulher não é pecadora, ou que o que ela vive não é
pecado. Nem diz que os justos não são realmente justos. Mas, frisa por que ele
veio para os pecadores: “ela manifesta mais amor porque mais lhe foi perdoado”.
– Quem segue Jesus
(Lc 8, 1- 3)
A narrativa de Lucas é teológica. O “depois disso” não é necessariamente no tempo. É mais
conseqüência. O modo de dizer que Jesus abriu o reinado divino para todo tipo
de gente foi contar que ele “atravessa” cidades e aldeias, assim como, no
início da Bíblia, o patriarca Abraão, tendo escutado a promessa de Deus,
atravessa a terra prometida (Cf. Gn 13, 17). Antes, vocês tinham dito que “ele
andava anunciando...” (4, 43- 44).
Um sociólogo
especializado na idade antiga escreveu:
“No mundo de
Jesus e no Evangelho de Lucas, a aldeia aparece como uma unidade homogênea. A
aldeia não é apenas uma povoação pequena que ainda não é cidade. A cidade
representa a população heterogênea e em geral é apresentada no plural. A aldeia
tem uma população quase como clã: um povo como “uma grande multidão” (ochlos) coesa e com auto-suficiência em
atender a todas as necessidades. Na maioria das vezes, os líderes das aldeias
estão ligados à sinagoga. Por conta dessa homogeneidade, a aldeia deixava muita
gente excluída do seu círculo. As pessoas que vinham de outras aldeias eram
consideradas “forasteiros”. As relações entre as aldeias eram de conflito e
competição. Vimos que os habitantes de Cafarnaum queriam reter Jesus em sua
aldeia e Jesus não aceitou a restrição: “Devo anunciar a Boa Nova também a
outras cidades” (Cf. Lc 4, 43). Os pobres, doentes, pecadores são considerados
pessoas “de fora”. É muito mais duro ser excluído em uma comunidade pequena do
que em uma sociedade maior e mais heterogênea. Na sua narrativa, Lucas
demonstra interesse especial pelos que estão em posição periférica com relação
à comunidade da aldeia”[1].
Parece que
Jesus escolhe seus seguidores mais próximos no meio de pessoas inseridas na
aldeia e que mantinham contato com suas famílias quando estavam nas próprias
aldeias. Entretanto, Jesus os chama a uma vida de itinerância que, pouco a
pouco, cria dificuldades com as aldeias. Ele tem seguidores e também algumas
mulheres que o “seguem”. No
evangelho, o verbo seguir só é usado
para os discípulos mais próximos e mais imediatos: os doze. “Seguir” significa a condição do
discípulo ou discípula que acompanha o Mestre vinte e quatro horas por dia e
incondicionalmente. “Seguir” denota
ir até a cruz. Jesus chamou seguidores para ser testemunhas de sua morte e
ressurreição.
Em um tipo de sociedade, na qual as mulheres não eram consideradas dignas
ou aptas a ser testemunhas em qualquer processo, Jesus escolheu mulheres para
serem suas testemunhas privilegiadas. É difícil imaginar como naquele tipo de
sociedade, uma mulher “normal” teria
a liberdade de “seguir” e “servir” a um rabino itinerante como
Jesus e a seu grupo masculino. Mateus já tinha dito que as mulheres que
acompanharam a paixão, haviam seguido Jesus desde os tempos da Galiléia,
servindo-o” (Mt 27, 55). Tinham de ser mulheres “especiais”.
Lucas diz que
eram várias e cita algumas: Maria Madalena a quem o Senhor tinha libertado de
“sete demônios”. Libertada, era mais livre do que outras. Maria era uma pessoa
de aldeia. Chama-se “Madalena” como
podem me chamar de “pernambucano”.
Ela é de Magdala, uma aldeia da beira do lago da Galiléia. Elizabeth e Jürgen
Moltmann dizem que “ela sofria de uma grave doença mental, provavelmente
epilepsia e começou a seguir Jesus porque ele a curou”[2].
Conforme a
tradição, Maria Madalena ocupou uma função de liderança feminina nas primeiras
comunidades cristãs. Sempre que os evangelistas trazem nome de mulheres
discípulas, o nome dela vem em primeiro lugar. E nos Evangelhos apócrifos,
aparecem cenas, nas quais Pedro disputa com ela a coordenação do grupo. O nome
das outras mulheres vem junto de uma alusão a certo poder social: Joana, mulher
do procurador ou intendente de Herodes na Galiléia e Susana que, com outras,
garantiam o sustento do grupo. Então, eram mulheres com mais poder aquisitivo
do que os homens que seguiam Jesus. Este dado parece histórico. Vem mesmo da
vida de Jesus. Isso fica claro porque é justamente este evangelho que mais
realça a pobreza como valor evangélico, o que fala da posição social elevada
que elas têm. Então, só podemos ficar contentes com o fato de que mesmo essa
escolha radical da pobreza como comunhão com os mais pequeninos não exclui
ninguém, nem mesmo as pessoas de classe média ou mais ricas que se integram na
caminhada do grupo, como seria o caso dessas duas, Joana e Suzana. Alonso
Shokel na Bíblia do Peregrino comenta: “Ao grupo de seguidores, junta-se um
grupo de mulheres, contra os costumes dos rabinos”[3].
Fonte: Marcelo Barros
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