Sociedade civil: a fera amansada
Alvaro Bianchi
As
últimas décadas do século XX presenciaram a emergência de novos
movimentos sociais e de um renovado associativismo. Vinculado ao
vigoroso ascenso dos movimentos sociais no final da década de 60, à luta
pela expansão dos direitos fundamentais e à afirmação da identidade de
atores sociais até então marginalizados, esse processo renovou as formas
tradicionais de participação política introduzindo novas tácticas de
mobilização popular e novas formas organizativas.
Novas formas de associação
De maneira genérica, podemos apontar três processos que ocorreram a
partir do final dos anos 1960 e formatam o contexto no qual esses novos
movimentos e organizações tiveram lugar: crise/crítica das formas
tradicionais de organização política consubstanciadas nos partidos
comunistas e social-democratas e nos sindicatos tradicionais;
crise/crítica do Estado de bem-estar social e do seu potencial de
controle e passivação das classes subalternas; crise/crítica dos regimes
antidemocráticos da América Latina e do Leste europeu.
Tais processos, combinados de maneira desigual, deram origem a formas
de associação e participação política que, rompendo com antigas
instituições, inauguraram um novo ciclo de organização popular,
introduzindo práticas sociais inovadoras, criando novos espaços de
participação política, reinventando a solidariedade e produzindo formas
originais de organização.
A emergência de uma dimensão produtiva na sociedade civil tem
alimentado as teorias ditas do terceiro sector, do sector não-lucrativo
ou sector público não-estatal. Nessas teorias, é identificada a
possibilidade de uma esfera que, definindo-se como pública porque
voltada ao interesse geral, coloca-se à margem do Estado, retirando a
sua força da sociedade civil. É esta a esfera dos novos movimentos
sociais, as associações sem fins lucrativos e as organizações
não-governamentais (ONGs) que, ocupando espaços que o Estado não pode ou
não quer preencher, produziriam bens e serviços de interesse colectivo.
O facto de tais organizações se definirem como autônomas não tem
impedido que, cada vez mais, realizem parcerias e convênios com o Estado
e o sector privado. Através de contratos e financiamento, os Governos
transferem, assim, para as organizações da sociedade civil parte das
suas funções. Noutros casos, o Estado cede instalações e serviços já
existentes a esse sector, como no processo de reforma do Estado na
Inglaterra de Margaret Thatcher ou no projeto de criação de organizações
sociais e reforma do Estado de Luiz Carlos Bresser Pereira no Brasil. A
relação poderia, ainda, envolver o sector privado que, através de
«parcerias estratégicas» com organizações da sociedade civil,
implementaria estratégias de desenvolvimento econômico e social ou
forneceria serviços necessários para, principalmente, comunidades
carentes. Por último, existem situações em que agências internacionais
de financiamento, como o Banco Mundial e a United States Agency for
International Development (USAID), realizam acordos de cooperação com
tais organizações para a implementação de projetos políticos, econômicos
e sociais.
Da dependência financeira…
Essa estreita relação existente entre as organizações da sociedade
civil, o Estado e o mercado coloca sérias dificuldades para se pensar a
autonomia das primeiras em relação às demais. As pesquisas comparativas
que têm sido realizadas indicam a inexistência de uma clara autonomia
financeira. O estudo internacional dirigido por Lester Salamon indicou
que, para um conjunto de 35 países, uma média de 35% dos recursos das
organizações do chamado «sector não lucrativo» eram provenientes dos
cofres públicos, 53,4% da cobrança de taxas e apenas 11,7% de
filantropia. Na Irlanda e na Bélgica a participação do Estado nessas
receitas chega a 77%. No Brasil a fraca participação do Governo –15% – é
compensada pela elevada cobrança de taxas, geralmente como
contrapartida dos usuários de serviços públicos, responsável por 77% do
orçamento dessas organizações.
É preciso, entretanto, tomar com cuidado esses dados. Nos países
chamados «em desenvolvimento» há outras fontes de recursos, como os
financiamentos provenientes de agências internacionais e de ONGs e
associações com sede nos países capitalistas centrais. Os dados de
Salomon não dão conta desses recursos, mas uma pesquisa da Associação
Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), com as suas
associadas revelou que a principal fonte de receitas são as «agências
internacionais de cooperação», responsáveis por 43% do orçamento,
enquanto órgãos estatais nacionais, estaduais e municipais eram
responsáveis por outros 20%.
…
à dependência política
Governos e agências internacionais tem definido, por meio desses
recursos, a agenda de organizações da sociedade civil. Tais agendas,
formatadas por meio das parcerias e convênios estabelecidos, minaram a
autonomia de muitas dessas organizações. Em muitos casos estas
transformaram-se em meios de preservação do status
quo econômico,
político e social ou mesmo de conformação de um sistema de dominação
que restringe a ação autônoma e a oposição. Não é só a ideia da
autonomia que é abalada por tais situações, como a própria ideia de que a
sociedade civil seria o
locus dos impulsos emancipatórios.
Paradoxalmente, os processos de crítica/crise dos regimes
burocráticos do Leste europeu, que deram o impulso inicial para o
ressurgimento do conceito de sociedade civil, transformaram-se num
poderoso argumento contra as ideias de autonomia da sociedade civil e
doe seu carácter inerentemente progressista. Pois foi justamente nos
países nos quais ela afirmou de maneira mais enfática a pretensão de
autonomia sob a forma da «sociedade civil contra o Estado» – Polônia e
Hungria – que de maneira mais rápida foi absorvida pelo Estado e pelo
mercado, perdendo significativamente a sua força inicial.
No Leste europeu e na América Latina, combinaram-se frequentemente
processos de concertação que levaram à desmobilização da sociedade civil
e à incorporação das suas direções no aparelho governativo, com a
rápida transformação dessas direções em defensoras do livre mercado. Em
muitas ocasiões as chamadas organizações não governamentais foram
coadjuvantes no processo de desmantelamento dos serviços públicos
estatais e protagonistas do esvaziamento das organizações tradicionais
de luta da classe trabalhadora e da juventude e de moderação dos
conflitos sociais.
Quanto aos impulsos emancipatórios que residiriam na sociedade civil,
não é demais alertar que este conjunto de organismos não é socialmente
indiferenciado. Os cortes classistas e as lutas entre os diferentes
grupos sociais atravessam esse conjunto de organismos. Este alerta
justifica-se na medida em que, no vocabulário político hodierno,
tornou-se preponderante um conceito tocquevilliano de «sociedade civil».
Neste, a sociedade civil passou a significar um conjunto de associações
situadas fora da esfera estatal, indiferenciadas e potencialmente
progressistas, agentes da transformação social e portadoras de
interesses universais não contraditórios.
A constituição do movimento altermundialista e as experiências dos
fóruns sociais mundiais pareceriam confirmar essa visão. Mas vale
alertar que além das organizações que compõem o movimento
altermundialista, o reacionário
Project for a New American Century e os demais
think tanks
conservadores que formataram a política externa do Governo Bush, fazem
parte, também, dessa sociedade civil. Simone Chambers e Jefrey Kopstein
(2001) chamaram a atenção, apropriadamente, para a existência de uma “
bad civil society”:
o desenvolvimento de correntes autoritárias ou, até mesmo,
totalitárias, no interior da própria sociedade civil e não à sua margem,
como foi o caso do nazismo na República de Weimar e do fascismo na
Itália.
Percebida não como um todo indiferenciado, mas como um conjunto
marcado pelos profundos antagonismos classistas, a sociedade civil perde
o seu véu ilusório. Ao invés de local da universalização de interesses
particularistas ela deveria ser vista como um espaço da luta de classes,
da afirmação de projetos antagônicos e, portanto, da construção de uma
utopia não-autolimitada.
Referências bibliográficas