A morte anunciada dos Guarani-Kaiowá
Frei Betto
Escritor e assessor de movimentos sociais
Adital
A Justiça revogou a ordem de retirada de 170 índios
Guarani-Kaiowá das terras em que habitam no Mato Grosso do Sul. Em carta à
opinião pública, eles apelaram: "Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para
não decretar a ordem de despejo, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar
nós todos aqui. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos
morrer todos, mesmo, em pouco tempo”.
A morte precoce, induzida –o que nós, caras-pálidas,
chamamos de suicídio– é recurso frequente adotado pelos Guarani-Kaiowá para
resistirem frente às ameaças que sofrem. Preferem morrer que se degradar. Nos
últimos vinte anos, quase mil indígenas, a maioria jovens, puseram fim às suas
vidas, em protesto às pressões de empresas e fazendeiros que cobiçam suas
terras.
A carta dos Guarani-Kaiowá foi divulgada após a Justiça
Federal determinar a retirada de 30 famílias indígenas da aldeia Passo Piraju,
em Mato Grosso do Sul. A área é disputada por índios e fazendeiros. Em 2002,
acordo mediado pelo Ministério Público Federal, em Dourados, destinou aos
índios 40 hectares ocupados por uma fazenda. O suposto proprietário recorreu à Justiça.
Segundo o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), vinculado
à CNBB, há que saber interpretar a palavra dos índios: "Eles falam em morte
coletiva (o que é diferente de suicídio coletivo) no contexto da luta pela
terra, ou seja, se a Justiça e os pistoleiros contratados pelos fazendeiros
insistirem em tirá-los de suas terras tradicionais, estão dispostos a morrerem
todos nela, sem jamais abandoná-las”, diz a nota.
Dados do CIMI indicam que, entre 2003 e 2011, foram
assassinados, no Brasil, 503 índios. Mais da metade –279– pertence à etnia
Guarani-Kaiowá. Em protesto, a 19 de outubro, em Brasília, 5 mil cruzes foram
fincadas no gramado da Esplanada dos Ministérios, simbolizando os índios mortos
e ameaçados.
São comprovados os assassinatos de membros dessa etnia por
pistoleiros a serviço de fazendeiros da região. Junto ao rio Hovy, dois índios
foram mortos recentemente por espancamentos e torturas.
A Constituição abriga o princípio da diversidade e da
alteridade, e consagra o direito congênito dos índios às terras habitadas
tradicionalmente por eles. Essas terras deveriam ter sido demarcadas até 1993.
Mas, infelizmente, a Justiça brasileira é extremamente morosa quando se trata
dos direitos dos pobres e excluídos.
Um quarto de século após a aprovação da carta
constitucional, em 1988, as terras dos Guarani-Kaiowá ainda não foram
demarcadas, o que favorece a invasão de grileiros, posseiros e agentes do
agronegócio.
Participei, no governo Lula, de toda a polêmica em torno da
demarcação da Raposa Serra do Sol. Graças à decisão presidencial e à sentença
do Supremo Tribunal Federal, os fazendeiros invasores foram retirados daquela
reserva indígena.
No caso dos Guarani-Kaiowá não se vê, por enquanto, a mesma
firmeza do poder público. Até a Advocacia Geral da União, responsável pela
salvaguarda dos povos indígenas –pois eles são tutelados pela União– chegou a
editar portaria que, na prática, reduz a efetivação de vários direitos.
O argumento dos inimigos de nossos povos originários é que
suas terras poderiam ser economicamente produtivas. Atrás desse argumento
perdura a ideia de que índios são pessoas inúteis, descartáveis, e que o
interesse do lucro do agronegócio deve estar acima da sobrevivência e da
cultura desses nossos ancestrais.
Os índios não são estrangeiros nas terras do Brasil. Ao
chegarem aqui os colonizadores portugueses –equivocamente qualificados nos
livros de história de "descobridores”– se depararam com mais de 5 milhões de
indígenas, que dominavam centenas de idiomas distintos. A maioria foi vítima de
um genocídio implacável, restando hoje, apenas, 817 mil indígenas, dos quais
480 mil aldeados, divididos entre 227 povos que dominam 180 idiomas diferentes
e ocupam 13% do território brasileiro.
Não adianta o governo brasileiro assinar documentos em prol
dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável se isso não se traduzir
em gestos concretos para a preservação dos direitos dos povos indígenas e de
nosso meio ambiente.
Bem fez a presidente Dilma ao efetuar cortes no projeto do
novo Código Florestal aprovado pelo Congresso. Entre o agrado a políticos e os
interesses da nação e a preservação ambiental, a presidente não relutou em
descartar privilégios e abraçar direitos coletivos.
Resta agora demonstrar a mesma firmeza na defesa dos
direitos desses povos que constituem a nossa raiz e que marcam
predominantemente o DNA do brasileiro, conforme comprovou o Projeto Genoma
Humano.
[Frei Betto é escritor, autor da novela indigenista "Uala, o
amor” (FTD), entre outros livros.