sábado, 2 de novembro de 2013

Sobre a morte, uma boa reflexão escrita pelo monge Marcelo Barros

 Nessa noite, em vários lugares do continente, as pessoas recordam seus entes queridos já falecidos. Nossa sociedade tem medo de falar da morte e disfarça como pode a experiência da morte. De fato, a morte, enquanto minha, é uma experiência impensável. Epicuro dizia que se eu existo, a morte não existe. Se a morte acontece, eu não existo mais. Então, eu não posso fazer a experiência da morte. Mas, a faço quando experimento a morte de uma pessoa que amo. Kant escreveu: “Quanto à morte, ninguém pode experimenta-la por si mesmo, mas só a apreende na morte do outro". O medo de morrer não é medo da morte mas medo de ser morto. 
         As tradições religiosas revelam que a vida não é  penas biológica, nem a morte é mero acidente de percurso. Como diz a Bíblia: “Para todas as coisas, há o momento certo. Existe o tempo de nascer e o tempo de morrer”(Ecl 3). Rubem Alves compara a vida com uma sinfonia na qual a morte é o último acorde.  Como se a morte dissesse: “É pena, mas está completo. Para que seja belo, é preciso que agora acabe”.  
         A sociedade urbanizada não consegue viver de forma  integrada a comunhão com seus falecidos. Muitos não vêem mais sentido em ir ao cemitério ou a um velório. Nas culturas antigas, velava-se o defunto em casa, em um cerimonial de convivência. As pessoas cantavam. Havia comidas próprias para os que passavam a noite. Atualmente, paga-se uma capela de cemitério e reduz-se o velório ao tempo mínimo. A morte é disfarçada. É um assunto que se evita. Essa dificuldade de lidar com a morte de um modo digno já aparece no fato de que a ciência finge que controla a vida. A morte parece reduzida a um acidente fatal. Ninguém mais morre “naturalmente”. Ou aparece uma doença traiçoeira, ou acontece um acidente fatal. 
              Quando a vida é desumanizada, a morte também perde o seu sentido, a sua sacralidade. A sociedade desenvolve um culto ao corpo e à beleza física. As pessoas são educadas a fechar-se em si mesmas, despreparadas para enfrentar a morte dos outros e a sua própria. A sociedade gosta tanto da literatura e do filme de fantasma e vampiro porque sente confusão diante da morte, mistura mortos e vivos. Como se o ideal de todos fosse “morrer velhos, mas esbeltos”. De fato, a morte humaniza a vida porque revela que somos criaturas limitadas. Educar nossos filhos fugindo da questão da morte não os ajuda a assumir os próprios limites e os dos outros. Como não levam a sério a morte, as pessoas são facilmente empurradas para a violência e o desrespeito à vida. Cada vez mais, como dizia Guimarães Rosa:  “viver é muito perigoso”. 
            As religiões e culturas tradicionais têm uma importante função: revelar que Deus nos criou para a vida e uma vida digna e plena. Agrada a Deus quem defende a vida em todos os aspectos e dimensões: a vida própria, a dos outros e a do universo. Lutar pela vida, contra a dor e a destruição inclui a sabedoria de acolher a irmã morte quando, de algum modo, ela nos vem. Se cremos em Deus, temos confiança de que  morte não é o fim. Se não, a morte seria deus e o amor de Deus não valeria nada. A morte continua sendo sempre uma tragédia. Mas, as religiões vêem caminhos para além da morte. Muitos creem na reencarnação. Os cristãos proclamam a ressurreição. Esta esperança muda a forma de encarar a morte. 
               A maneira como a sociedade se organiza diante da morte está estreitamente ligada ao modo como ela organiza a vida. Na sociedade ocidental, diante de um morto a gente pensa: “De que morreu?”. Nas sociedades tradicionais, a pergunta é “Por que morreu?”. Através dela, o grupo se põe a questão da sua responsabilidade, expressa o sentimento de culpa. Viver e morrer não são atos vividos no isolamento. 
              De fato,  o espírito é sempre encarnado e o corpo sempre espiritualizado. A morte é a cisão entre um tipo de corporalidade limitado, biológico, restrito a um pedaço do mundo, isto é, nosso corpo e outro tipo de corporalidade em relação à matéria, ilimitado, aberto, pancósmico que corresponde ao novo modo de ser em que entra o homem após a morte, a eternidade. 
                      Nos Evangelhos, Jesus sofre quando pressente que vai ser morto. A morte é inimiga do ser humano e a ela tudo está submetido. A carta aos hebreus diz que Jesus elevou orações e súplicas com lágrimas Àquele que o podia salvar da morte (5, 7). Morre dando um grande grito.    “A morte é o último inimigo a ser reduzido ao nada por Deus” (1 Cor 15, 26). Deus não substitui o velho pelo novo. Ele faz do velho o novo. A ressurreição é uma forma de estar com Cristo. 


                  Antes de ser assassinado, Dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, disse: “Estou ameaçado de morte. Como cristão, não creio na morte sem ressurreição. Se me matam, ressuscitarei no meu povo… Sinto-me obrigado a dar a vida por quem amo que são todos os salvadorenhos, inclusive aqueles que vão me assassinar… Que meu sangue seja semente de libertação e sinal de que a esperança será, em breve, realidade”.
Fonte: Marcelo Barros

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