Papa: Concílio Vaticano II, imagem da Igreja de Jesus Cristo que abraça todo o mundo
10/10/2012 | Rádio Vaticano
O jornal da Santa Sé, L'Osservatore Romano, publicou uma edição
especial por ocasião do 50° aniversário de abertura do Concílio Vaticano
II.
A
publicação, em 40 mil exemplares, é composta por narrativas intensas do
período do concílio com detalhes de crônicas pouco conhecidas e
fotografias raras. Abre essa edição o texto de Bento XVI que na época
era jovem e participou como teólogo.
Segue na íntegra, o texto do Santo Padre.
Foi um dia maravilhoso aquele 11 de Outubro de 1962 quando, com a
entrada solene de mais de dois mil Padres conciliares na Basílica de São
Pedro em Roma, se abriu o Concílio Vaticano II. Em 1931, Pio XI
colocara no dia 11 de Outubro a festa da Maternidade Divina de Maria, em
recordação do facto que mil e quinhentos anos antes, em 431, o Concílio
de Éfeso tinha solenemente reconhecido a Maria esse título, para
expressar assim a união indissolúvel de Deus e do homem em Cristo. O
Papa João XXIII fixara o início do Concílio para tal dia com o fim de
confiar a grande assembleia eclesial, por ele convocada, à bondade
materna de Maria e ancorar firmemente o trabalho do Concílio no mistério
de Jesus Cristo. Foi impressionante ver entrar os bispos provenientes
de todo o mundo, de todos os povos e raças: uma imagem da Igreja de
Jesus Cristo que abraça todo o mundo, na qual os povos da terra se
sentem unidos na sua paz.
Foi um momento de expectativa extraordinária pelas grandes coisas que
deviam acontecer. Os concílios anteriores tinham sido quase sempre
convocados para uma questão concreta à qual deviam responder; desta vez,
não havia um problema particular a resolver. Mas, por isso mesmo,
pairava no ar um sentido de expectativa geral: o cristianismo, que
construíra e plasmara o mundo ocidental, parecia perder cada vez mais a
sua força eficaz. Mostrava-se cansado e parecia que o futuro fosse
determinado por outros poderes espirituais. Esta percepção do
cristianismo ter perdido o presente e da tarefa que daí derivava estava
bem resumida pela palavra «actualização»: o cristianismo deve estar no
presente para poder dar forma ao futuro. Para que pudesse voltar a ser
uma força que modela o porvir, João XXIII convocara o Concílio sem lhe
indicar problemas concretos ou programas. Foi esta a grandeza e ao mesmo
tempo a dificuldade da tarefa que se apresentava à assembleia eclesial.
Obviamente, cada um dos episcopados aproximou-se do grande
acontecimento com ideias diferentes. Alguns chegaram com uma atitude
mais de expectativa em relação ao programa que devia ser desenvolvido.
Foi o episcopado do centro da Europa - Bélgica, França e Alemanha - que
se mostrou mais decidido nas ideias. Embora a ênfase no pormenor se
desse sem dúvida a aspectos diversos, contudo havia algumas prioridades
comuns. Um tema fundamental era a eclesiologia, que devia ser
aprofundada sob os pontos de vista da história da salvação, trinitário e
sacramental; a isto vinha juntar-se a exigência de completar a doutrina
do primado do Concílio Vaticano I através duma valorização do
ministério episcopal. Um tema importante para os episcopados do centro
da Europa era a renovação litúrgica, que Pio XII já tinha começado a
realizar. Outro ponto central posto em realce, especialmente pelo
episcopado alemão, era o ecumenismo: o facto de terem suportado juntos a
perseguição da parte do nazismo aproximara muito os cristãos
protestantes e católicos; agora isto devia ser compreendido e levado por
diante a nível de toda a Igreja. A isto acrescentava-se o ciclo
temático Revelação-Escritura-Tradição-Magistério. Entre os franceses,
foi sobressaindo cada vez mais o tema da relação entre a Igreja e o
mundo moderno, isto é, o trabalho sobre o chamado «Esquema XIII», do
qual nasceu depois a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo
contemporâneo. Atingia-se aqui o ponto da verdadeira expectativa
suscitada pelo Concílio. A Igreja, que ainda na época barroca tinha em
sentido lato plasmado o mundo, a partir do século XIX entrou de modo
cada vez mais evidente numa relação negativa com a era moderna então
plenamente iniciada. As coisas deviam continuar assim? Não podia a
Igreja cumprir um passo positivo nos tempos novos? Por detrás da vaga
expressão «mundo de hoje», encontra-se a questão da relação com a era
moderna; para a esclarecer, teria sido necessário definir melhor o que
era essencial e constitutivo da era moderna. Isto não foi conseguido no
«Esquema XIII». Embora a Constituição pastoral exprima muitas elementos
importantes para a compreensão do «mundo» e dê contribuições relevantes
sobre a questão da ética cristã, no referido ponto não conseguiu
oferecer um esclarecimento substancial.
Inesperadamente, o encontro com os grandes temas da era moderna não
se dá na grande Constituição pastoral, mas em dois documentos menores,
cuja importância só pouco a pouco se foi manifestando com a recepção do
Concílio. Trata-se antes de tudo da Declaração sobre a liberdade
religiosa, pedida e preparada com grande solicitude sobretudo pelo
episcopado americano. A doutrina da tolerância, tal como fora
pormenorizadamente elaborada por Pio XII, já não se mostrava suficiente
face à evolução do pensamento filosófico e do modo se concebia como o
Estado moderno. Tratava-se da liberdade de escolher e praticar a
religião e também da liberdade de mudar de religião, enquanto direitos
fundamentais na liberdade do homem. Pelas suas razões mais íntimas, tal
concepção não podia ser alheia à fé cristã, que entrara no mundo com a
pretensão de que o Estado não poderia decidir acerca da verdade nem
exigir qualquer tipo de culto. A fé cristã reivindicava a liberdade para
a convicção religiosa e a sua prática no culto, sem com isto violar o
direito do Estado no seu próprio ordenamento: os cristãos rezavam pelo
imperador, mas não o adoravam. Sob este ponto de vista, pode-se afirmar
que o cristianismo, com o seu nascimento, trouxe ao mundo o princípio da
liberdade de religião. Todavia a interpretação deste direito à
liberdade no contexto do pensamento moderno ainda era difícil, porque
podia parecer que a versão moderna da liberdade de religião
pressupusesse a inacessibilidade da verdade ao homem e,
consequentemente, deslocasse a religião do seu fundamento para a esfera
do subjectivo. Certamente foi providencial que, treze anos depois da
conclusão do Concílio, tivesse chegado o Papa João Paulo II de um país
onde a liberdade de religião era contestada pelo marxismo, ou seja, a
partir duma forma particular de filosofia estatal moderna. O Papa vinha
quase duma situação que se parecia com a da Igreja antiga, de modo que
se tornou de novo visível o íntimo ordenamento da fé ao tema da
liberdade, sobretudo a liberdade de religião e de culto.
O segundo documento, que se havia de revelar depois importante para o
encontro da Igreja com a era moderna, nasceu quase por acaso e cresceu
com sucessivos estratos. Refiro-me à declaração Nostra aetate, sobre as
relações da Igreja com as religiões não-cristãs. Inicialmente havia a
intenção de preparar uma declaração sobre as relações entre a Igreja e o
judaísmo - um texto que se tornou intrinsecamente necessário depois dos
horrores do Holocausto (shoah). Os Padres conciliares dos países árabes
não se opuseram a tal texto, mas explicaram que se se queria falar do
judaísmo, então era preciso dedicar também algumas palavras ao
islamismo. Quanta razão tivessem a este respeito, só pouco a pouco o
fomos compreendendo no ocidente. Por fim cresceu a intuição de que era
justo falar também doutras duas grandes religiões - o hinduísmo e o
budismo - bem como do tema da religião em geral. A isto se juntou depois
espontaneamente uma breve instrução relativa ao diálogo e à colaboração
com as religiões, cujos valores espirituais, morais e socioculturais
deviam ser reconhecidos, conservados e promovidos (cf. n. 2). Assim, num
documento específico e extraordinariamente denso, inaugurou-se um tema
cuja importância na época ainda não era previsível. Vão-se tornando cada
vez mais evidentes tanto a tarefa que o mesmo implica como a fadiga
ainda necessária para tudo distinguir, esclarecer e compreender. No
processo de recepção activa, foi pouco a pouco surgindo também uma
debilidade deste texto em si extraordinário: só fala da religião na sua
feição positiva e ignora as formas doentias e falsificadas de religião,
que têm, do ponto de vista histórico e teológico um vasto alcance; por
isso, desde o início, a fé cristã foi muito crítica em relação à
religião, tanto no próprio seio como no mundo exterior.
Se, ao início do Concílio, tinham prevalecido os episcopados do
centro da Europa com os seus teólogos, nas sucessivas fases conciliares o
leque do trabalho e da responsabilidade comuns foi-se alargando cada
vez mais. Os bispos reconheciam-se aprendizes na escola do Espírito
Santo e na escola da colaboração recíproca, mas foi precisamente assim
que se reconheceram servos da Palavra de Deus que vivem e trabalham na
fé. Os Padres conciliares não podiam nem queriam criar uma Igreja nova,
diversa. Não tinham o mandato nem o encargo para o fazer: eram Padres do
Concílio com uma voz e um direito de decisão só enquanto bispos, quer
dizer em virtude do sacramento e na Igreja sacramental. Então não podiam
nem queriam criar uma fé diversa ou uma Igreja nova, mas compreendê-las
a ambas de modo mais profundo e, consequentemente, «renová-las» de
verdade. Por isso, uma hermenêutica da ruptura é absurda, contrária ao
espírito e à vontade dos Padres conciliares.
No Cardeal Frings, tive um «pai» que viveu de modo exemplar este
espírito do Concílio. Era um homem de significativa abertura e grandeza,
mas sabia também que só a fé guia para se fazer ao largo, para aquele
horizonte amplo que resta impedido ao espírito positivista. É esta fé
que queria servir com o mandato recebido através do sacramento da
ordenação episcopal. Não posso deixar de lhe estar sempre grato por me
ter trazido - a mim, o professor mais jovem da Faculdade teológica
católica da universidade de Bonn - como seu consultor na grande
assembleia da Igreja, permitindo que eu estivesse presente nesta escola e
percorresse do interior o caminho do Concílio. Este livro reúne os
diversos escritos, com os quais pedi a palavra naquela escola; trata-se
de pedidos de palavra totalmente fragmentários, dos quais transparece o
próprio processo de aprendizagem que o Concílio e a sua recepção
significaram e ainda significam para mim. Em todo o caso espero que
estes vários contributos, com todos os seus limites, possam no seu
conjunto ajudar a compreender melhor o Concílio e a traduzi-lo numa
justa vida eclesial. Agradeço sentidamente ao arcebispo Gerhard Ludwig
Müller e aos colaboradores do Institut Papst Benedikt XVI pelo
extraordinário compromisso que assumiram para realizar este livro.
Castel Gandolfo, na memória do bispo Santo Eusébio de Vercelas, 2 de agosto de 2012.
Fonte: www.cnbb.org.br