Caso Guarani-Kaiowá nos alerta da truculência dos tempos, diz antropóloga
“Despejar” índios de suas terras é uma prática recorrente no
Brasil desde que os primeiros portugueses pisaram por aqui, cinco
séculos atrás. Mas as expulsões arbitrárias e os extermínios violentos
raras vezes mobilizaram de fato a sociedade civil, mesmo quando questões
indígenas se tornaram pauta de governos, fundações, ONG’s etc.
Um dos capítulos mais recentes dessa história, no entanto, envolvendo os
Guarani-Kaiowás
no Mato Grosso do Sul, alcançou uma repercussão quase inédita no país,
em tempos de internet e redes sociais. O motivo principal foi uma
carta divulgada no último mês pelos índios, na qual eles falavam em “morte coletiva” no caso de despejo de suas terras.
Pertencentes
a uma tribo já conhecida pelas altas taxas de suicídio, eles pediam
que, se fosse para tirá-los de lá, era melhor decretar de uma vez por
todas sua dizimação e extinção total. A Justiça Federal acabou
suspendendo a decisão liminar que obrigava a saída dos cerca de 170
índios de uma área da fazenda Cambará, mas ainda não há uma resolução
definitiva para o problema.
Para além dos fatos concretos, das
ordens judiciais e decisões políticas imediatas, parece estar por trás
do caso dos Guarani-Kaiowás, como de tantos outros, uma antiga
intolerância e incompreensão do pensamento indígena. “Há ainda uma
insuperada distância mantida com relação às formas ameríndias de
conhecer e habitar o mundo”, afirma
Marta Rosa Amoroso, professora do Departamento de Antropologia da USP.
Na busca de uma discussão mais aprofundada sobre o caso, fugindo do senso comum, a revista
Brasileiros, 14-11-2012, entrevistou a antropóloga, pesquisadora e especialista em etnologia indígena.
Eis a entrevista.Costumamos
falar de manifestações como o racismo declarado nos EUA, o preconceito
religioso ou a xenofobia na Europa como realidades completamente
distantes da brasileira, já que tendemos a ver o País como “um lugar da
tolerância, da miscigenação”. Quando vêm à tona questões como a dos
Guarani-Kaiowás, no entanto, parece ficar clara a incapacidade que
temos, aqui também, de conviver os “os outros”, de respeitar “os
diferentes”. Guardadas as diferenças entre cada caso, você acha possível
traçar um paralelo entre essas realidades? Quer dizer, a “base da
incompreensão” é a mesma?No caso dos países e regiões
citadas, são projetos bastante distintos de construção da identidade
nacional ou religiosa e, neste sentido, incomparáveis. Fiquemos,
portanto com a particularidade do processo pelo qual se deu a construção
da nação brasileira e o lugar que os índios ocuparam neste projeto. Foi
com
D. Pedro II que a ideia de uma nação brasileira se
formulou e isso se fez a partir da noção da pluralidade dos povos que a
compunham. Políticas públicas orientadas pela brandura para com os
índios conceberam ainda no século XIX os aldeamentos indígenas do
Império, equipados pelo governo central para servirem de comunicação
entre a sede do Império e as povoações indígenas, instituídas enquanto
as fronteiras habitadas da nação. As aldeias dos
Guarani-Kaiowá, Nandeva e
Mbya, como também as dos
Kaingang da
região sudeste do Brasil – hoje palco de intensa disputa pelo
agronegócio – fornecem neste sentido um excelente exemplo de fronteiras
do Brasil habitadas por indígenas. Na Guerra do Paraguai essas aldeias
indígenas serviram de base para a criação dos aldeamentos do Império,
dispostos na fronteira e equipados para atender os povos indígenas
garantindo a eles espaço, tanto no território como no projeto da nação.
Os índios estavam ali, o Estado brasileiro reconhecia, e os índios
continuam ali.
O que mudou, e entramos no tema da intolerância,
foi a lentidão da resposta do Estado brasileiro para as demandas por
terra dos povos indígenas do sudeste do país. Nos anos1990, a demarcação
das terras indígenas motivada pela questão ambientalista voltou-se para
a Amazônia, deixando o sudeste indígena sem um programa sistemático de
identificação e demarcação das terras. Este processo que se inicia em
alguns casos só agora, é mais do que aguardado e urgente. Os
Kaiowá-Guarani do sudeste do país foram deixados sem garantias e
protagonizaram ali, sem a devida proteção do Estado, a luta pela terra,
em meio a imensas disputas.
Nesse sentido, mesmo em
muitas das manifestações de apoio aos índios que proliferam na internet,
nota-se um ranço de uma visão “etnocêntrica”. Um certo olhar de “pena”
às vezes se sobrepõe à uma discussão mais horizontal. Você concorda? Se
sim, o que isso parece revelar?Não podemos reduzir o
imaginário construído sobre os povos ameríndios a esse tipo de visão na
qual o índio é vítima, ainda que a leitura da assimetria na chave da
desigualdade social seja facilmente acessada pelo senso comum. Os índios
aderiram às redes sociais e protagonizam movimentos políticos que
ocupam as nuvens da internet com outro tipo de mensagem, colocada à
disposição dos que se interessam pelas dinâmicas contemporâneas. Mas no
caso dos índios do sudeste e de sua luta bastante antiga pela garantia
do seu território, penso que associá-los a população de risco em
situação liminar não é nada descabido, e neste sentido a comoção que
essa luta mobilizou não me parece exagerada.
Você acha,
portanto, que existe uma dificuldade (ou mesmo uma falta de vontade) de
entender o ponto de vista indígena? Ou seja, o típico pensamento do
“homem branco ocidental” de que “nós sabemos o que é bom para eles”
ainda predomina?Há ainda uma insuperada distância
mantida com relação às formas ameríndias de conhecer e habitar o mundo.
Este não reconhecimento da diferença pode estar por trás de muitos dos
projetos de filantropias e programas de desenvolvimento voltados para os
índios. Novamente o caso dos Guarani é sugestivo para se pensar o tema
da construção do conhecimento em diferentes chaves de compreensão. Para
falar de sua territorialidade, os Guarani mobilizam uma noção ampla e
compreensiva dos diversos domínios do cosmos que é a noção do
Tekoha.
Diante dessa macro categoria, símbolo do universo em conexão, as cestas
básicas e os assistencialismos rastaqueras que são aventados como
compensação aos territórios surrupiados são uma boa medida da distância
que se manteve das formas ameríndias de conhecer e habitar o mundo.
Ao
mesmo tempo, a enorme mobilização ocorrida nas redes sociais, e até
manifestações de rua, mostram uma novidade no quadro, com muita gente
que não tem interesses diretos agindo pela causa…De
fato a comoção tomou dimensões surpreendentes nestes tempos de
baixíssimas mobilizações pró-índio. Como se precisássemos de imagens
contundentes como as dos Guarani-Kaiowá para nos alertar da truculência
dos tempos.
Agora, tentando entender melhor o ponto de vista dos
índios: quando falamos em luta pela terra, muita gente parece não
entender que a visão dos índios não é como a nossa, da luta pela
propriedade privada. Claro que cada tribo é diferente da outra, mas, de
modo geral, como é a relação do índio com a terra onde mora? Não é de
posse, certo?
Sugiro que a reportagem acesse uma imagem
panorâmica da região do oeste do Paraná e do sul do Mato Grosso do Sul e
nela identifique onde se pratica o modo de vida Guarani , em contraste
com as outras formas de cultivo da terra. Já na época da demarcação das
terras indígenas na Amazônia havia ficado claro que onde os povos
ameríndios mantiveram a presença, a floresta havia se mantido. Estas
imagens projetadas na paisagem nos falam, no caso dos povos indígenas,
de modelos sócio-políticos baseados em dinâmicas de mobilidade constante
e de uma cosmovisão pautada pelo comedimento e pela ética de moderação
identificável nos regimes de relação com o que identificamos como
“ambiente”, que para os ameríndios não se apresenta como algo apartado.
Na
nossa sociedade, o suicídio é visto como a decisão mais “pessoal” e
“individual” de todas. Quando os índios falam, na carta que veio a
público, em um tipo de suicídio coletivo – ou de morte do povo por
resistência –, chama atenção a profunda ligação deles com a comunidade e
o modo com que colocam suas vidas à disposição dessa causa. Qual é essa
concepção de mundo que eles transmitem no conteúdo desta carta?A
carta veicula
uma auto-reflexão dos Guarani-Kaiowá sobre as práticas de suicídio
entre os jovens Guarani-Kaiowá, auto-reflexão esta motivada pela
intenção das lideranças indígenas de alertar os brasileiros sobre outro
conjunto de mortes, os assassinatos de índios naquelas fronteiras.
Sintomaticamente, é o fenômeno do suicídio que a organização indígena
mobiliza para falar ao Brasil da situação agônica que os Guarani-Kaiowá
vivem na luta pelo direito à terra. (Fonte: CIMI)
COMENTÁRIO
Tentaram destruir os povos indígenas com a "descoberta" do Brasil. A grande ambição dos índios é viver e respeitar tudo aquilo que pertence a natureza porque eles se sentem parte da natureza. A luta continua: os índios em defesa da vida e os invasores em defesa da riqueza.